**Diário de um Motorista de Autocarro**
Chamo-me Diogo. Conduzo o Autocarro 14 em Braga. O mesmo percurso há 22 anos. Vejo os mesmos rostos. Muitas vezes, rostos cansados. Principalmente os idosos que esperam na esquina da Rua do Carvalho com a Rua 5 de Outubro. Sentados ali, à espera. Como se esperassem que o mundo se lembrasse deles.
Num inverno, começou a aparecer a Dona Amélia. Uns 80 e tal anos. Pequenina. Sempre com o mesmo casaco roxo desbotado. Sentava-se sozinha no banco, agarrada a uma bolsa gastada, a olhar para a rua vazia. A sério, a olhar. Como se tentasse fazer o autocarro chegar mais depressa. Ou talvez só desejando que alguém a visse.
Na maioria dos dias, ninguém via. As pessoas passavam por ela como se fosse parte do banco. Até a própria família… Bem, uma vez vi-a a chorar baixinho ao telefone: “Só queria ouvir a tua voz, querida… Sim, sim, eu sei que estás ocupada. Não te preocupes comigo.” Desligou, secou os olhos rapidamente, como se tivesse vergonha. O meu coração… apertou. Eu acenava quando chegava:
— Bom dia, Dona Amélia!
Ela sorria, mas o sorriso nunca chegava aos olhos. Apenas educação. Como quem está habituado a ser invisível.
Até que, numa terça-feira gelada, ela não apareceu. Nem no dia seguinte. Uma preocupação roía-me. Depois do turno, caminhei até à sua casinha, três quarteirões adiante. Espreitei pela janela embaciada e vi-a caída numa cadeira, o cobertor desalinhado, a parecer terrivelmente sozinha. Bati à porta. Ela abriu, confusa, depois assustada.
— Oh! Diogo! O motorista do autocarro! O que… o que se passa?
— É que não a vi no ponto e quis saber se estava tudo bem, Dona Amélia.
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas:
— Ninguém… ninguém veio ver-me — sussurrou.
Aquilo mudou tudo. Da próxima vez que a vi no ponto, não só acenei. Saí do autocarro antes de abrir a porta.
— Hoje está frio, Dona Amélia! O cachecol está bem apertado? — perguntei, apontando para ele.
Ela pestanejou, surpresa.
— Ora… sim, Diogo. Obrigada por teres reparado.
Trinta segundos. Mas o rosto todo dela brilhou. Como se eu lhe tivesse dado ouro.
Comecei a fazer o mesmo pelos outros. A Dona Luísa, que sempre trazia a sua malha:
— Esse cachecol fica-lhe ótimo, Dona Luísa!
O senhor Alberto, que andava devagar:
— Sem pressa, Sr. Alberto! O autocarro não sai sem o senhor.
Coisas pequenas. Nomes. Vê-los.
E então, algo incrível aconteceu. Os outros começaram a fazer o mesmo. Uma jovem mãe com o bebé sorria para a Dona Amélia:
— Adoro o seu casaco roxo, senhora. É tão alegre!
Um adolescente de auscultadores tirava um lado:
— Precisa de ajuda com a bolsa, Dona Luísa?
Numa manhã de neve, vi o Sr. Alberto a ajudar a Dona Amélia a tirar a neve do banco antes de ela se sentar. Nada de especial. Apenas… humanos.
Não era sobre comida ou arranjos. Era sobre ver. Ver-se realmente. Como se importássemos. Sem motivo.
A Dona Amélia partiu na primavera passada. Em paz, disse-me a filha (que finalmente começou a visitá-la mais). No seu pequeno funeral, adivinhem quem estava lá? Não só a família. Eu. A Dona Luísa. O Sr. Alberto. A jovem mãe. Até o adolescente. Não éramos família, mas éramos as suas pessoas. As pessoas da paragem.
Agora, o Autocarro 14 é diferente. As pessoas conversam. Perguntam como estamos. Guardam lugares para quem anda devagar. Partilham guarda-chuvas. Não é barulhento nem extraordinário. Apenas… mais bondoso. Mais quente.
Sou apenas um motorista de autocarro. Mas aprendi uma coisa: às vezes, o mais poderoso que podes dar a alguém não é dinheiro ou comida. É olhá-lo nos olhos, dizer o seu nome e fazê-lo sentir… que não foi esquecido. Aquela pequena faísca? Alastra. Alastra mesmo.
Da próxima vez que vires alguém sozinho — numa paragem, numa loja, até na tua rua, diz olá. Se souberes o nome, diz-o. Não custa nada. Mas para quem se sente invisível? Pode ser a luz que esperava. Experimenta. Vê o que cresce.