Vou acabar com ela se não aprender a me respeitar, filho

Há muitos anos, numa tarde abafada de verão, o telefone tocou no escritório de Carlos. A voz do outro lado da linha era cortante como uma faca, carregada de uma raiva mal disfarçada.

— Se a tua mulher não aprender a falar comigo como deve ser, eu vou arrancar-lhe os cabelos todos, filho!

A voz da mãe ecoava, aguda e furiosa, abafando até o ruído monótono do escritório. Carlos apertou o telefone contra o ouvido e virou-se, evitando o olhar curioso de um colega. No monitor, o relatório anual parecia agora apenas um emaranhado de números sem sentido. A realidade estava ali, na mão dele — quente, densa, cheia de tensão.

— Mãe, o que aconteceu? — perguntou, já exausto, mantendo a voz baixa.

— As minhas amigas vieram cá! A Dona Lurdes, a Fátima! Mulheres de respeito, não é qualquer uma! Estou a pôr a mesa, a cortar os salgados, o assado no forno. Liguei à Sara, pedi com educação: «Vem cá só meia horinha, ajuda-me que eu não vou dar conta sozinha». E ela?!

Teresa fez uma pausa dramática. Carlos imaginou-a na cozinha, com o avental de festa, o telemóvel numa mão e uma faca de cozinha na outra. Na sala, as amigas ficaram como espectadoras — juízas daquela peça de teatro familiar.

— Ela disse-me que estava ocupada! — explodiu a mãe. — Disse que eu devia ter avisado com mais tempo! Isto é normal? Que tom é esse? Imaginas? Humilha-me à frente das minhas convidadas! Estão ali a olhar, e ela a dar-me lições sobre organização!

Carlos esfregou a têmpora. Conhecia aquela história de cor. Para a mãe, qualquer desvio do plano era uma catástrofe, e a culpa sempre caía sobre alguém. Sabia que Sara realmente estivera ocupada. O trabalho dela, feito em casa, exigia mais concentração do que o seu trabalho de escritório. Mas para a mãe, só existia um horário — o dela.

— Mãe, explica-me tudo desde o início. O que é que ela te disse exatamente?

— Desde o início? — a voz dela endureceu de mágoa. — Disse: «Dona Teresa, neste momento não posso, estou numa reunião importante. Assim que acabar, daqui umas horas, vou aí». Estás a ver? Põe o trabalho dela acima de um pedido meu! Eu aqui a esfalfar-me, e ela sentadinha ao computador! Tens de a trazer cá agora. Que ela peça desculpas. Às todas.

Soou como uma sentença. Não um pedido, mas uma ordem. Carlos imaginou-se a largar tudo no trabalho, ir buscá-la a casa e arrastá-la para aquele tribunal improvisado. A ideia era tão absurda que quase lhe saiu um riso.

— Estou a trabalhar, mãe. Não posso ir a lado nenhum. Falamos ao final do dia.

— Ao final do dia?! Não percebes! Foi agora que me humilharam! Elas estão ali a pensar que foste buscar uma nora mal-educada, que não respeita a sogra! Resolve isto agora! Liga-lhe! Manda-a vir! És homem ou não?

Sentiu-se novamente na armadilha dos jogos da mãe. Ela não queria solução. Queria uma demonstração de poder — que ele obedecesse, e que a Sara reconhecesse a sua autoridade.

— Vou resolver mais tarde — repetiu, firme. — Tenho que trabalhar.

Pousou o telemóvel com o ecrã virado para baixo. O colega fingia não ter ouvido, mas Carlos sentia o seu olhar, tão incómodo como a sensação de humilhação deixada pela chamada. Os números no monitor desfocaram-se. A noite seria longa.

Em casa, o cheiro a café fresco enchia o ar. Nada de fumos de carne ou panelas no fogão — ali era diferente. Limpo, organizado, sem excessos. Sara estava à secretária, concentrada no ecrã. Só após alguns segundos reparou nele.

Carlos foi à cozinha, encheu um copo de água e bebeu de um trago. O frio aliviou o calor interno. Sara tirou os auscultadores e virou-se para ele. No rosto, nenhum sinal de culpa. Apenas cansaço e serenidade.

— Olá. Como foi o dia?

— A minha mãe ligou.

— Já sabia. Desligou-me na cara quando disse que estava ocupada.

— Quer que peças desculpas. Às amigas dela.

Sara fechou o portátil com cuidado. Falou devagar, sem emoção:

— Estava numa reunião com clientes alemães. Estávamos a fechar um contrato que negoceio há três meses. Disse-lhe: «Dona Teresa, agora estou numa chamada importante. Logo que acabe, venho aí ajudar». Foi quando ela desligou. Foi só isso.

As palavras dela eram precisas, como factos num relatório. E naquela calma, havia uma verdade inabalável. Carlos viu duas realidades: a histeria da mãe por causa de uns salgados, e o profissionalismo da Sara, que sustentava o futuro deles. A escolha que lhe impunham desde sempre parecia-lhe agora ridícula.

— Está tudo claro — disse, breve. Pegou no telemóvel, marcou o número. — Vem cá.

Sara aproximou-se. Ele ligou a chamada em altifalante, e quase de imediato ouviu-se a voz tensa da mãe:

— Então? Vindes cá?

— Mãe, já tratei — respondeu Carlos, frio. — A Sara estava a trabalhar. Não podia largar tudo porque decidiste chamar visitas. Não é criada. É a minha mulher.

Silêncio do outro lado, seguido de um suspiro indignado.

— Como é que…

— Não acabei. Nunca mais voltas a falar assim com ela. Muito menos a ameaçar. Se ouvir outra vez, não nos vemos mais. Nunca. Entendeste?

O silêncio tornou-se denso, pesado. Como se alguém tivesse tirado o chão dos pés de Teresa. Carlos desligou primeiro. Olhou para Sara. No olhar dela, não havia vitória. Havia compreensão. Sabiam que era só o começo. A primeira batalha numa guerra que a mãe já começara.

Passaram-se duas semanas. Quinze dias de silêncio opressivo. A mãe não ligou. Aquela quietude assustava mais que gritos. Carlos sabia: ela não desistira. Apenas preparava o próximo ataque.

E veio.

O telemóvel acordou-o num sábado de manhã. A voz da mãe soava estranhamente doce, melosa:

— Filho, bom dia. Pensei… o meu aniversário está a chegar. Não é grande data, mas gostava de juntar a família. As tuas tias, primas. Tu e a Sara vêm? É muito importante para mim…

Carlos olhou pela janela, para a paisagem cinzenta da cidade. Cada palavra dela era um degrau numa escada que levava a uma armadilha. «Os mais próximos». «Muito importante». Não era um convite — era uma declaração de guerra, com as peças já colocadas e as regras escritas.

— Vamos — respondeu, sabendo que a recusa seria uma vitória para ela, que usaria como prova perante a família.

No dia do aniversário, entraram no apartamento dela. O ar estava espesso de perfumes, gordura de carne e chão encerado. A sala já estava cheia: as irmãs da Teresa — a Zulmira e a Odete, duas mulheres quase idênticas, cópias desbotadas uma da outra; as sobrinhas, a Dona Lurdes — guardiã dos segredos da família — e outras figuras do passado, reunidas ali como num palco. Todos se viraram para os recém-chegOlharam-nos com sorrisos falsos, prontos para o julgamento, mas desta vez Carlos e Sara atravessaram a sala de cabeça erguida, sabendo que o silêncio deles era a única resposta que aquela guerra familiar merecia.

Leave a Comment