Num dia de outono, uma chamada de emergência chegou à estação de ambulâncias: «Criança de cinco anos, febre alta, inconsciência, possível paragem cardíaca». A equipa foi enviada para um bairro de luxo, onde os mansões se alinhavam — não o local mais típico para o serviço de urgência. Famílias assim costumavam preferir médicos privados ou clínicas próprias.
Os médicos Beatriz e Guilherme chegaram ao local. Quando a ambulância parou diante da casa imponente, trocaram olhares perplexos — pacientes assim raramente recorriam ao sistema público.
Mas assim que a porta se abriu, Beatriz paralisou. Diante dela estava o seu ex-marido — Ricardo Filipe Mendes. O tempo o envelhecera um pouco, o rosto mais marcado, o olhar angustiado.
— Meu Deus, Beatriz Sofia! Por favor, salve o meu filho! — quase gritou. — Eu pedi especificamente por si. Sei que são profissionais excecionais. O Tomás está inconsciente há mais de dez minutos!
— Fez reanimação? — perguntou Beatriz rapidamente.
— Sim, começámos. Mas eu vim abrir a porta, e a minha mulher está a continuar a massagem cardíaca.
— Então vamos logo tratar do miúdo! — ordenou ela, entrando primeiro.
Beatriz sempre fora confiante. Não por ingenuidade, mas por uma alma que via o melhor nas pessoas. Foi isso que a levou a Ricardo, anos atrás. Todos avisavam: «Ele é um conquistador, calculista e egoísta». Mas ela insistia: «O meu Ricardo é diferente».
Conheceram-se na mesma ambulância, onde ela começara como jovem médica e ele chefiava o departamento. Na época, ela tinha vinte e cinco anos — esbelta, de cabelo claro, olhos verdes bondosos. Parecia frágil, mesmo de bata branca, e a longa trança que depois cortou por ser imprática no trabalho só acentuava a aparência juvenil.
Ricardo também impressionava. Cirurgião de formação, já salvara centenas de vidas. Ombros largos, barba cuidada, tudo nele transmitia força e confiança. Gostava de andar de mota preta após o turno para aliviar o stress. O cabelo curto, com entradas que lhe davam seriedade, e o olhar penetrante — como se lesse almas.
Quando Beatriz começou a trabalhar, todos esperavam outra conquista passageira. Ricardo era conhecido como um sedutor implacável. Mas com ela, agia diferente — gentil, contido, quase protetor. Isso intrigava até os colegas mais céticos.
O romance foi rápido. Um ano de passeios de mota, e casaram. Para muitos, foi surpresa — quem diria que um solteirão como ele se fixaria?
A vida não era fácil. Os salários médicos eram baixos, a burocracia enorme, o desgaste constante. Muitos desistiam, mas Beatriz e Ricardo ficaram. Escolheram a medicina por vocação, não por dinheiro.
Maria Leonor, mãe de Ricardo, entendia a luta. Trabalhara a vida toda num hospital, sobrevivera aos anos difíceis, criara o filho sozinha após o marido, António, desaparecer misteriosamente nos anos 80. Ela fora mãe, pai e sustento.
Maria adorou Beatriz desde o início. Uma rapariga de uma vila pequena, que se firmara na cidade sem influências. Modesta, trabalhadora, de coração puro. Para Beatriz, a sogra substituiu a mãe que perdera cedo. Criaram um laço genuíno.
Foi Maria quem propôs abrir uma clínica privada. Ricardo hesitou — achava arriscado, principalmente para a idade dela. Mas Beatriz apoiou. Maria assumiu a maior parte: encontrou o espaço, tratou de documentos, contratou pessoal. Ricardo ajudou com finanças e contactos, mas o motor por trás era ela.
Nos primeiros anos, a clínica prosperou devagar mas certo. Maria revelou-se não só uma médica experiente, mas uma gestora talentosa. Parecia nascida para liderar, mesmo sem experiência prévia.
Ricardo e a mãe trouxeram os primeiros pacientes. Investiram tudo: tempo, dinheiro, energia. Beatriz também contribuiu. Decidiram que ela faria uma segunda especialização — dermatologia e estética. Mesmo com os turnos exaustivos, estudava à noite, raramente dormindo bem.
Mas o ritmo cobrou um preço — nunca tiveram filhos. Ricardo não se importava, mas Beatriz angustiava-se. Sabia que o tempo biológico passava, mas não queria dececionar a família. Após perder a mãe, só tinha o marido e a sogra como esteio.
Quando a clínica decolou e Beatriz pendurou o segundo diploma, tornou-se conhecida na cidade. Uma médica que resolvia casos difíceis, um nome associado à esperança. Os rendimentos da família Mendes cresceram.
Cinco anos depois, Beatriz ainda trabalhava sem descanso, alheia à gestão da clínica. Ricardo, porém, envolvia-se ativamente. Consultava advogados, discutia planos com a mãe. Sabia cada detalhe, embora a proprietária legal fosse Maria. Mas o controle real já era dele.
O primeiro golpe veio de forma inesperada. Um anónimo nas redes sociais disse a Beatriz que o marido a traía. Ela riu-se — confiava nele cegamente. Mas quando Maria morreu subitamente à mesa de jantar, a mensagem voltou a assombrá-la. A ambulância chegou rápido, mas já era tarde. «Era a sua hora», disseram.
No funeral, Beatriz parecia perdida. Emagrecera, estava irreconhecível. A lembrança da traição e um comentário antigo de uma cliente, Valéria, martelavam-lhe a mente:
— O Ricardo ainda anda de mota?
— Não, há anos. O trabalho não permite. Mesmo sendo mais que um hobby…
— Estranho. Vi-o recentemente na sua mota preta. Com uma mulher — morena.
Na época, Beatriz ignorou. Agora, parecia uma peça de um puzzle sombrio.
Semanas após o funeral, descobriu a verdade. Ricardo não queria dividir a herança — mas isso era o menor dos problemas. Ele levava uma vida dupla. A amante era a secretária da clínica — Júlia, uma morena atraente, com quem planejava recomeçar. A diferença de idade (vinte anos) não os incomodava. O caso virara «amor verdadeiro» — e Júlia estava grávida.
— Como pudeste? — sussurrou Beatriz, sentindo algo desmoronar dentro de si.
— Perdoa-me, Beatriz. Nunca quis magoar-te. Sinto-me jovem com ela. E… ela está grávida. Quatro meses.
— Canalha… Sempre disseste que era cedo. Agora, de repente, é a hora? Só a minha passou, não foi?
— Não dramatizes. Ficas com o apartamento.
Beatriz olhou amargamente para as paredes que testemunharam sua vida.
— E a clínica? Ficas com tudo, pelo testamento da tua mãe, claro.
— Sim. Mas não te preocupes — já arranjei tua substituta.
— Até nisso és frio… — murmurou. — Certo. Vai embora. Antes do amanhecer.
O divórcio foi rápido, sem emoção. A funcionária do registo civil nem sugeriu reconciliação.
O que mais doía não era só a traição, mas a suspeita de que Maria talvez soubesse mais do que aparentava. Talvez por isso deixara tudo ao filho, não a ambos.
Beatriz não discutiu. Saiu em silêncio, com dignidade. Uma vida nova — sem eles. Sem mentiras. Sem dor.
Quando o divórcio terminou, Beatriz estava sozinha. Sem família, sem casa, sem clínica. Recomeçou do zero, numa idade em que muitas mulheres já têm vidas estabilizadas. Mas não se rendeu. O carácter forjado nos tempos difíceis manteve-a firme.
Voltou às origens — àE, anos depois, quando o pequeno Tomás, agora seu filho adotivo, segurou sua mão e disse “Obrigado por ser minha mãe”, Beatriz sorriu, sabendo que a vida, por mais dura que fosse, sempre encontrava um modo de se equilibrar.