Quase não atendi o telefone naquela manhã de sexta-feira.
O nome de João a brilhar no ecrã fez-me parar—como ver um fantasma em plena luz do dia. Três anos tinha passado desde que ele saíra sem aviso, escolhendo outra mulher e uma vida nova a poucos quarteirões de distância. Nada de adeus. Nada de explicações. Simplesmente… desapareceu.
Mas esta vez, a voz dele era diferente.
“Beatriz,” disse, num tom baixo, como se o remorso finalmente o tivesse alcançado. “Tenho pensado muito… na Carolina. Quero vê-la. Quero fazer as coisas direito.”
Falou sobre fins-de-semana juntos, recuperar o tempo perdido, e como nunca deixou de a amar. Parte de mim queria desligar, fechar aquela porta para sempre. Mas a outra parte—aquela que vira a Carolina adormecer a abraçar um ursinho que ela chamara de “Papá”—não podia negar-lhe a oportunidade que ela tanto desejava.
Então, disse que sim.
Para ilustração apenas
A Carolina ficou radiante. A ajudaramos a fazer a mala: pijama brilhante, croquetes de animais, o coelho de peluche gasto e um desenho que dizia “Senti a tua falta, Papá.” Sorriu para mim com aquele otimismo infantil que parte e remenda o coração.
“Vou perguntar-lhe se podemos comer panquecas e ir ao Jardim Zoológico!”
Sorri, forçando-me a acreditar que isto era bom. Migalhas de cura, talvez.
Sábado passou com mensagens alegres—fotos da Carolina no baloiço, com algodão doce, a andar no carrossel. Pela primeira vez em anos, deixei uma réstia de paz assentar no meu peito.
Mas a paz pode ser enganadora.
Domingo à tarde, a minha irmã ligou. Nunca esquecerei o pânico na voz dela.
“Bea, vê o Instagram. Agora.”
“O que se passa?” perguntei, já a abrir a aplicação.
“Ele casou-se. Hoje. A tua filha—ela esteve no casamento.”
Congelei.
Ali, no meu ecrã, estava João, a sorrir num fato impecável, ao lado de uma mulher de branco—a Sara. E no meio deles, a Carolina. Com um vestido branco rendado que eu nunca vira, a segurar um ramo de flores grande demais para ela, a olhar para a câmara com os olhos arregalados.
A legenda dizia:
#MelhorDiaDaMinhaVida #FamíliaReunida #NossaPrincesa
As minhas mãos ficaram geladas. Senti a garganta apertar.
Liguei. Ele não atendeu. Liguei outra vez. Correio de voz. Outra vez.
Então, peguei no carro.
O local era uma quinta nos arredores de Lisboa. Rosas brancas enlaçavam a entrada. Champanhe a fluir. Música a tocar. João dançava com a Sara sob luzinhas cintilantes enquanto os convidados brindavam ao “para sempre”.
E ali—sozinha num banco, longe do riso—estava a Carolina. A tiara torta, o coelho de peluche agarrado ao peito.
Quando me viu, correu. “Mamã,” sussurrou, enterrando o rosto no meu casaco, “vamos para casa?”
Não disse nada. Peguei nela e virei-me para sair. Foi então que a Sara bloqueou o meu caminho, toda ela pérolas e performatividade.
“Espera!” disse, com um sorriso doce. “Ainda não tirámos a foto de família!”
Olhei para ela.
“Ela não é um enfeite,” disse, a voz a tremer de raiva. “É uma criança. Não é um adereço para a tua fantasia perfeita.”
O sorriso de Sara nem vacilou. “Relaxa. Ela estava tão fofa. Só precisávamos de uma florzinha.”
E foi então que uma das madrinhas se aproximou, hesitante.
“Foi planeado,” murmurou. “A Sara disse que convenceria o João a ’emprestar a miúda’ para as fotos ficarem perfeitas. Disse que tu ias cair nessa.”
Senti o mundo desabar.
Não olhei para o João. Não gritei. Simplesmente peguei na minha filha e levei-a para o carro, protegendo-a de um quarto cheio de estranhos que não mereciam conhecê-la.
Em casa, deitei-a na cama. Ela não chorou. Apenas pegou na minha mão e perguntou: “Mamã… sou mesmo a princesa dele?”
Engoli as lágrimas.
“Não, minha vida. És a minha princesa. E nunca mais vou deixar que ninguém te use.”
Na manhã seguinte, as fotos do casamento desapareceram das redes sociais. A história de fadas da Sara desfez-se quando amigos mutuos deixaram de a seguir. Ninguém ligou. Nem o João.
Aquele fim-de-semana foi a última vez que ele viu a Carolina.
E talvez seja o melhor.
Para ilustração apenas
Porque há pessoas que não regressam para amar—voltam para usar. E há mães que não apenas criam os filhos—protegem-nos daqueles que deveriam saber melhor.
Posso não ser perfeita, e tropecei pelo caminho. Mas nunca desapareci. Nunca usei a minha filha para consertar a minha imagem ou tapar uma mentira.
A Carolina vai crescer a saber que o amor não se merece por ser “fofa” o suficiencte para uma foto de casamento. É algo que se dá livremente. Com toda a força.
E quando olhar para trás, não vai lembrar-se de quem não ficou.
Vai lembrar-se de quem nunca a deixou.