Depois de uma vida de sacrifício, Beatriz finalmente juntou o suficiente para garantir um pedacinho de liberdade nos seus anos tranquilos. Mas quando a filha reaparece com sorrisos doces e intenções afiadas, tudo desmorona. O que é roubado não é apenas dinheiro, mas a confiança, o legado e o amor. No meio da confusão, Beatriz descobre que família nem sempre é quem compartilha o mesmo sangue, mas sim quem fica ao seu lado.
Quando falam de envelhecer, geralmente mencionam as pequenas coisas que desejam. Coisas como dormir até tarde, cuidar do jardim, viajar, ler livros que nunca tiveram tempo.
Quanto a mim?
Só queria silêncio. Não aquele pesado, que aperta o peito como luto, mas o silêncio leve que vem quando você sabe que já deu o suficiente. Que já trabalhou o bastante.
Chamo-me Beatriz e tenho cinquenta e cinco anos. Fui mãe por mais tempo do que não fui. Minha filha, Leonor, tinha três anos quando o pai saiu pela porta da frente sem olhar para trás.
Lembro-me mais do cheiro do café velho e da chuva daquela manhã do que do som da porta a fechar-se atrás dele. Criei-a sozinha durante alguns anos, até conhecer o António, um homem de mãos quentes e riso calmo. Ele trouxe uma filha também, a Matilde.
No início, era tímida, mas com o tempo encostou-se ao meu lado como se sempre tivesse pertencido ali.
O António morreu cinco anos depois de nos casarmos. Foi súbito e inesperado. Um coração que simplesmente parou numa noite em que estava a dobrar roupa. E, assim, tornei-me mãe solteira de duas meninas.
Trabalhei como uma louca por elas. Dois empregos, às vezes três, se precisasse de horas extras para pagar as contas. As noites eram longas e os fins de semana desapareciam em turnos matinais e chamadas de última hora.
Se for sincera, acho que não comprei roupa nova durante quase uma década. Os pés doíam constantemente. E o corpo estava exausto.
Mas tinha um objetivo: garantir que as meninas tivessem tudo o que eu não tive.
Frequentaram uma boa escola privada. Ganharam carros nos seus 18 anos, usados, claro, mas fiáveis. Ajudei-as ambas na faculdade com o que podia. Preparei todos os lanches que consegui. Estive na primeira fila em todos os recitais e peças de última hora.
Estava determinada a que crescessem sentindo-se seguras e escolhidas.
A Matilde sempre reparou. Mesmo depois de se formar, ligava só para saber como estava.
“A tua anca ainda te incomoda, Mãe?”, perguntava, a voz sempre um pouco ofegante, como se tivesse corrido pela casa.
Aparecia com sopa quando eu estava gripada, mesmo tendo trabalho no dia seguinte. Uma vez, deixou uma vela perfumada na minha caixa do correio, com um bilhetinho.
“Sempre me fizeste sentir como se fosse tua, Mãe. Vou passar a vida a provar que te vejo e agradeço.”
Ela nunca esperou que eu pedisse. Apenas… aparecia.
A Leonor, por outro lado, sempre foi mais difícil de alcançar. Não fria, apenas silenciosamente amarga. Era como se houvesse uma balança que só ela via, e nunca se inclinava a seu favor.
Uma vez, durante o almoço, brincou com a comida, concentrada em algo que eu ainda não entendia.
“Sabes, Mãe. Sempre senti que a Matilde teve o melhor de ti,” disse.
“Querida,” olhei para cima, estupefata. “Dei-vos a ambas tudo o que tinha.”
“Mesmo assim, parecia que ela vinha sempre em primeiro,” encolheu os ombros.
Passei anos a tentar provar o contrário. Comprei-lhe os cereais favoritos, dei-lhe o quarto maior, paguei o seguro do carro quando ela falhava. Lembrei-lhe, vezes sem conta, que o amor não era como um bolo, não desaparecia quando todas as fatias estivessem comidas.
Mas o ressentimento ficou nela. Era lento, silencioso e invasivo, como bolor atrás de um espelho. Não o notamos até estar enraizado.
Quando ambas saíram de casa, ficou tudo em silêncio. E, pela primeira vez em décadas, deixei-me pensar em mim.
Não tinha pensão ou poupanças. Nunca confiei em bancos, depois de tantas taxas e cheques sem fundo, desisti. Em vez disso, comprei um cofre pequeno e escondi-o atrás de um painel falso no meu roupeiro.
Não era muito… apenas o suficiente para alguns envelopes e papéis importantes.
Cada reembolso de impostos, cartão de aniversário ou bónus inesperado ia para lá. Sempre dobrado com cuidado.
Era meu, e ninguém, nem mesmo a Matilde, sabia.
Durante dez anos, deixei esse dinheiro descansar e crescer. Devagar, em silêncio. Tornou-se mais do que poupanças… era um símbolo de algo que nunca tive: controlo.
Nunca o toquei a não ser para juntar mais. Não verificava o total obsessivamente. Deixava-o ali, seguro e invisível. Esta primavera, atingira pouco mais de 40 mil euros. Não era luxo… mas era suficiente para respirar.
Não contei a ninguém o valor exato. Não precisava. Aquele dinheiro não era para exibir. Era o meu futuro. Era a minha tábua de salvação.
A minha pequena liberdade, depois de uma vida a segurar os outros.
Foi então que a Leonor começou a aparecer mais.
Trouxe café numa tarde, um latte com leite de aveia, como eu gosto, e ficou para o jantar, elogiando a mesma lasanha que outrora chamara “comida de prisão”.
Ficou na sala depois, a percorrer o Imovirtual no telemóvel.
“Alguns destes sítios são um absurdo, Mãe,” disse, virando o ecrã para mim. “Mas acho que encontrei o ideal. É perfeito!”
“Estás mesmo a pensar em comprar, Leonor?” sorri. “Que bom, quero ver as minhas filhas progredir e aproveitar a vida.”
“Pensar?” riu-se. “Mãe, estou pronta! Só preciso de uma ajuda para a entrada…”
O tom era leve, mas senti o peso por trás.
No dia seguinte, perguntou sobre a minha reforma. De forma casual, no início.
Estava a fazer frango grelhado e batatas, a cantarolar uma música do Carlos do Carmo, quando a Leonor entrou na cozinha.
“Mãe, já pensaste em mudar para algo mais pequeno?” perguntou. “Tipo… viver com alguém? Não terias menos com que te preocupar.”
“Gosto da minha paz e sossego, Leonor,” sorri. “Gosto do meu espaço.”
Depois, dias depois, a outra sapateira caiu como uma pedra.
“Preciso que me dês o dinheiro da tua reforma, Mãe,” disse, simplesmente.
“Leonor… o quê? Isso não é opção, querida. Esse dinheiro—”
“Eu sei,” interrompeu. “Esse dinheiro é o teu futuro precioso. Já ouvi isso vezes sem conta.”
“Então sabes como é importante,” disse, a olhar para ela, estupefata.
“Passaste a vida a dar a todos menos a mim, Mãe,” atirou. “Agora é a minha vez. És-me obrigada.”
A voz mudara. Agora, era amarga e cortante… quase irreconhecível. O rosto dela contorceu-se com algo que não reconheci, raiva, talvez.
Ou desespero.
De qualquer forma, gelou-me o sangue.
“Não, querida,” consegui sussurrar. “Lamento. Não posso.”
“És-me obrigada,” repetiu.
As palavras entraram na salaE no final, enquanto a Matilde me abraçava, percebi que algumas perdas não são finais, mas sim recomeços disfarçados.