Marido ri da esposa com só um refrigerante velho — mas o segredo estava dentro

Uma quietude espessa e sufocante envolveu o apartamento, impregnado pelo aroma de incenso e lírios murchos. Leonor estava sentada na borda do sofá, curvada, como se carregasse um peso invisível. O vestido negro colava-se ao corpo, áspero — um lembrete cruel da razão daquele silêncio fúnebre: hoje enterrara a avó, Esmeraldina Fernandes, a última pessoa que lhe restava.

À sua frente, reclinado na poltrona, estava o marido, Vasco. A presença dele era uma afronta — afinal, no dia seguinte pediriam o divórcio. Nenhuma palavra de consolo saíra da sua boca; apenas observara-a em silêncio, a irritação mal contida, como se aguardasse o fim daquele teatro incômodo.

Leonor fitava um ponto no tapete desbotado e sentia as últimas faíscas de esperança por reconciliação se extinguirem, deixando apenas um vazio gélido.

— Bem, os meus pêsames pela tua perda — rompeu o silêncio Vasco, voz carregada de ironia. — Agora és uma mulher abastada. Herdeira! A velhota deve ter deixado uma fortuna, não? Ah, é verdade, esqueci-me: o maior legado foi aquele frigorífico velho e enferrujado. Parabéns, um verdadeiro tesouro.

As palavras trespassaram-lhe o coração como uma lâmina. Lembrou-se das discussões intermináveis, dos gritos, das lágrimas. A avó, com seu nome peculiar, Esmeraldina, sempre desprezara o genro. “É um aproveitador, Leonor — avisara, séria. — Vazio como um tonel. Cuidado, vai esvaziar-te e descartar-te.” Vasco, por sua vez, chamava-lhe “bruxa velha”. Quantas vezes Leonor se vira no meio, tentando apaziguar os ânimos? Quantas lágrimas dera, acreditando que tudo se resolveria? Agora entendia: a avó vira a verdade desde o início.

— Já agora, sobre o teu ‘futuro brilhante’ — continuou Vasco, saboreando a crueldade. Levantou-se, ajustou o casaco caro. — Amanhã não precisas ir trabalhar. Já te despedi. O processo foi assinado hoje de manhã. Por isso, querida, em breve até esse frigorífico te parecerá um luxo. Vais revirar lixeiras para comer e lembrar-te-ás de mim com gratidão.

Era o fim. Não apenas do casamento, mas da vida que construíra ao redor daquele homem. A última esperança de humanidade nele morrera. No seu lugar, brotava um ódio puro e glacial.

Leonor ergueu os olhos vazios para ele, mas não disse nada. Para quê? Tudo fora dito. Em silêncio, levantou-se, dirigiu-se ao quarto, pegou numa mala já preparada. Ignorou os gracejos e risadas. Com a chave de um apartamento há muito esquecido apertada na mão, saiu, sem olhar para trás.

A rua recebeu-a com um vento frio. Leonor parou sob um candeeiro pálido, pousando as malas pesadas no chão. À sua frente erguia-se um prédio de nove andares, cinzento — a casa da sua infância, onde vivera com os pais.

Anos sem ali pisar. Depois do acidente de carro que levara a mãe e o pai, a avó vendera o seu apartamento e mudara-se para lá, criando-a. Aquelas paredes guardavam dor demais, e, ao casar-se com Vasco, Leonor evitara o lugar, encontrando-se com a avé em qualquer lado, menos ali.

Agora, era o único refúgio. Lembrou-se de Esmeraldina Fernandes — seu esteio, mãe, pai, amiga. E quantas vezes a visitara nos últimos anos, absorvida pelo trabalho na empresa do marido e pelas tentativas falhadas de salvar um casamento em ruínas? Uma culpa aguda perfurou-lhe o peito. As lágrimas, contidas o dia todo, jorraram. Ficou ali, a tremer, pequena e perdida na imensidão indiferente da cidade.

— Tia, precisa de ajuda? — uma voz fina, rouca, rompeu o silêncio. Leonor sobressaltou-se. Um miúdo de uns dez anos, com um casaco demasiado grande e uns ténis gastos, encarava-a. O olhar, apesar da sujidade no rosto, era lúcido, sério. Acenou para as malas: — Pesadas, não?

Leonor enxugou as lágrimas. A frontalidade dele deixou-a sem reação.

— Não, eu consigo — começou, mas a voz falhou.

O miúdo estudou-a.

— Por que está a chorar? — perguntou, sem curiosidade infantil, mas com uma sobriedade além da idade. — Gente feliz não fica na rua com malas a chorar.

As palavras simples fizeram-na olhá-lo de novo. Nos olhos dele não havia pena, nem troça — apenas compreensão.

— Chamo-me Tiago — disse ele.

— Leonor — sussurrou ela, sentindo a tensão a desvanecer. — Está bem, Tiago. Ajuda-me.

Acenou para uma das malas. Ele, com um grunhido, pegou nela, e avançaram juntos, aliados no infortúnio, para o prédio escuro, cheiroso a humidade e desinfetante barato.

A porta do apartamento rangeu, deixando-os entrar no silêncio poeirento. Tudo estava coberto por lençóis brancos, as cortinas cerradas, apenas um clarão da rua iluminando as partículas de pó. Cheirava a livros velhos e a algo profundamente triste — o perfume de uma casa abandonada. Tiago pousou a mala, inspecionou o local como um perito e deu o veredicto:

— Hum, aqui há trabalho… Pelo menos uma semana, se formos os dois.

Leonor sorriu ligeiramente. A praticidade dele trouxe um sopro de vida à atmosfera pesada. Olhou para o miúdo — magro, pequeno, mas com uma expressão tão séria. Sabia que, depois de a ajudar, ele voltaria para as ruas frias e perigosas.

— Olha, Tiago — disse, firme. — Já é tarde. Fica aqui esta noite. Lá fora está frio.

Os olhos dele surpreenderam-se. Por um instante, pairou a desconfiança — depois, acenou com a cabeça.

À noite, após uma ceia simples — pão, queijo, comprados no minimercado —, sentaram-se na cozinha. Lavado e aquecido, Tiago parecia quase uma criança normal. Contou a sua história, sem autocomiseração: pais alcoólatras, um incêndio na barraca, a fuga do orfanato.

— Não quero ir para a instituição — disse, fitando a caneca vazia. — Dizem que é bilhete só de ida para a miséria. Na rua, ao menos sou dono de mim.

— Isso não é verdade — respondeu Leonor, baixinho. A dor dela recuara perante a dele. — Nem o orfanato, nem a rua definem quem podes ser. O que importa és tu. Depende só de ti.

Ele ficou a olhá-la, pensativo. Naquele momento, entre duas almas solitárias, esticou-se o primeiro fio de confiança.

Mais tarde, Leonor arranjou-lhe uma cama no sofá, com lençóis que cheiravam a naftalina. Tiago enrolou-se e adormeceu quase de imediato — pela primeira vez em muito tempo, numa cama quentinha. Ela observou o rosto tranquilo dele e sentiu: talvez a sua vida ainda não tivesse acabado.

De manhã, a luz cinzenta filtrava-se pelas cortinas. Tiago ainda dormia. Leonor saiu em silêncio, deixando um bilheteLeonor sorriu ao pensar que, apesar de tudo, a vida lhe dera uma segunda chance — e dessa vez, ela não a desperdiçaria.

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