A espessa e pesada quietude envolveu o apartamento, impregnado do cheiro de incenso e lírios murchos. Joana estava sentada à beira do sofá, curvada como se carregasse um fardo invisível. O vestido preto colava-se ao corpo, latejando — uma lembrança dolorosa da razão por trás daquele silêncio morto: hoje, ela enterrara a avó, Eulália Anacleto — a última família que lhe restava.
À sua frente, no poltronão, esparramava-se o marido, Vasco. A presença dele parecia uma piada de mau gosto, afinal, no dia seguinte, iriam assinar os papéis do divórcio. Nenhuma palavra de consolo saíra da sua boca; apenas a observava em silêncio, mal disfarçando o aborrecimento, como se esperasse que aquela cena angustiante terminasse logo.
Joana fitava um ponto vago no tapete desbotado e sentia as últimas centelhas de esperança por reconciliação extinguirem-se lentamente, deixando no lugar um vazio gelado.
— Bem, os meus pêsames pela tua perda — Vasco quebrou o silêncio, a voz carregada de sarcasmo. — Agora és uma mulher abastada. Herdeira! A velhota deve ter deixado uma fortuna, não? Ah, espera, esqueci-me — o teu grande legado: aquele “Frigorífico Arca” velho e malcheiroso. Parabéns, um verdadeiro tesouro.
As palavras dele trespassaram-lhe o coração como uma lâmina. Memórias de brigas sem fim, gritos e lágrimas inundaram-lhe a mente. A avó, uma mulher de nome raro — Eulália —, detestara o genro desde o início. “É um trapaceiro, Joana”, dizia, com um olhar severo. “Oco como um tonel. Cuidado, ele vai deixar-te na miséria.” Vasco respondia com sorrisos tortos, chamando-lhe “bruxa velha”. Quantas vezes Joana se vira no meio do fogo cruzado, tentando acalmar os ânimos, quantas lágrimas derramara, acreditando que tudo se resolveria. Agora, percebia: a avó sempre soubera a verdade.
— Já que falamos no teu “futuro brilhante” — continuou Vasco, saboreando a própria crueldade. Levantou-se, alisando o casaco caro. — Amanhã, nem penses em aparecer no escritório. Já te despedi. O aviso está assinado desde esta manhã. Por isso, querida, em breve até essa arca velha vai parecer um luxo. Vais acabar a revirar caixotes do lixo para comer, e hás de lembrar-te de mim com gratidão.
Aquele era o fim. Não apenas do casamento, mas de toda a vida que construíra em torno daquele homem. A última esperança de que ele mostraria um fragmento de humanidade morrera. No seu lugar, crescia no peito dela um ódio puro e gelado.
Joana ergueu os olhos vazios para ele, mas não disse nada. Para quê? Tudo já fora dito. Levantou-se em silêncio, entrou no quarto e pegou na mala que preparara com antecedência. Ignorou as gargalhadas e provocações dele. Com a chave do apartamento antigo, esquecido há anos, apertada na mão, saiu sem olhar para trás.
A rua recebeu-a com um vento frio da noite. Joana parou sob um candeeiro fraco, deixando as malas pesadas no chão. À sua frente, erguia-se um prédio antigo de nove andares — a casa da sua infância e juventude, onde os pais viveram.
Anos se passaram desde a última vez que ali estivera. Depois do acidente de carro que matara a mãe e o pai, a avó vendera o próprio apartamento e mudara-se para lá, para criar a neta. Aquelas paredes guardavam demasiada dor, e, depois de casar com Vasco, Joana evitara o lugar, encontrando-se com Eulália em qualquer sítio menos ali.
Agora, era o seu único refúgio. Lembrou-se da avó com remorso — aquela mulher fora sua mãe, seu pai, sua amiga. E ela própria, nos últimos anos, visitara-a tão pouco, absorvida pelo trabalho na empresa do marido e pelas tentativas fracassadas de salvar um casamento já condenado. Uma culpa aguda trespassou-lhe o coração. As lágrimas, contidas o dia inteiro, caíram em torrentes. Ficou ali, a tremer de soluços abafados, pequena e perdida na imensidão indiferente da cidade.
— Tia, precisa de ajuda? — uma voz fina, levemente rouca, surgiu ao seu lado. Joana sobressaltou-se. Um miúdo de uns dez anos, com um casaco demasiado grande e ténis gastos, olhava para ela. Apesar da sujidade no rosto, os olhos eram claros, quase adultos. Indicou as malas: — São pesadas, não?
Joana limpou as lágrimas às pressas. A frontalidade e praticidade dele deixaram-na desconcertada.
— Não, eu dou conta… — começou, mas a voz falhou.
O miúdo estudou-a atentamente.
— Porque é que está a chorar? — perguntou, não com curiosidade infantil, mas com uma seriedade incomum. — As pessoas felizes não ficam na rua com malas a chorar.
A simplicidade daquelas palavras fê-la vê-lo de outra forma. Nos olhos dele, não havia pena nem troça — apenas compreensão.
— Chamo-me Rui — disse ele.
— Joana — respondeu ela, sentindo a tensão a esvair-se. — Tudo bem, Rui. Ajuda-me, sim?
Acenou para uma das malas. O miúdo, fazendo um esforço, pegou nela, e os dois, como aliados na desgraça, entraram na escuridão do prédio, que cheirava a humidade e a lixo.
A porta do apartamento rangeu ao abrir, deixando-os entrar no silêncio poeirento. Tudo estava coberto por lençóis brancos, as cortinas cerradas, apenas um fio de luz da rua iluminava as partículas de pó a dançarem no ar. Cheirava a livros velhos e a algo profundamente triste — o aroma de uma casa abandonada. Rui deixou a mala no chão, olhou em redor como um perito e deu o veredicto:
— Bolas, isto vai dar trabalho… Uma semana, no mínimo, se formos os dois.
Joana sorriu ligeiramente. A sua abordagem prática trouxe um sopro de vida àquele ambiente opressivo. Observou-o: magro, pequeno, mas com uma expressão séria. Sabia que, depois de a ajudar, ele voltaria para a rua, para o frio e o perigo.
— Olha, Rui — disse, com firmeza. — Já é tarde. Fica cá esta noite. Lá fora está frio.
O miúdo ergueu os olhos, surpreso. Por um instante, a desconfiança pairou no seu olhar — mas depois, apenas assentiu.
À noite, depois de uma ceia simples — pão, queijo, comprados na mercearia mais próxima —, sentaram-se na cozinha. Lavado e aquecido, Rui parecia quase uma criança normal. Contou a sua história — sem autocomiseração, sem lágrimas. Os pais bebiam. Um incêndio no bairro de lata. Eles morreram. Ele sobreviveu. Levaram-no para um lar, mas fugira.
— Não quero ir para um orfanato — disse, fitando a chávena vazia. — Dizem que é um bilhete para a miséria. Prefiro a rua — lá, ao menos, sou eu que mando em mim.
— Isso não é verdade — Joana falou baixo. A sua própria dor recuara perante a história dele. — Nem o orfanato, nemJoana olhou para Rui, agora um homem feito, e sentiu que, apesar de todas as perdas, a vida lhe dera o maior dos presentes — uma família feita de escolha, não de sangue, e um futuro mais luminoso do que alguma vez sonhara.