Um silêncio espesso e pesado envolveu o apartamento, impregnado pelo aroma de incenso e lírios murchos. Beatriz estava sentada na borda do sofá, curvada como se carregasse um fardo invisível. O vestido preto colava-se ao corpo, áspero contra a pele — um lembrete da razão daquela quietude morta: hoje enterrara a avó, Alexandrina Rodrigues, a última pessoa que lhe restava.
À sua frente, no cadeirão, esparramava-se o marido, Ricardo. Sua presença era uma zombaria — afinal, amanhã assinariam os papéis do divórcio. Nenhuma palavra de consolo saíra de sua boca; apenas a observava em silêncio, mal disfarçando o tédio, como se esperasse que aquele teatro acabasse.
Beatriz fixava o olho num ponto do tapete desbotado, sentindo as últimas faíscas de esperança se extinguirem, deixando um vazio gélido.
— Bem, os meus pêsames — Ricardo quebrou o silêncio com um tom cortante. — Agora és uma herdeira. A velhota deixou-te fortunas, não foi? Ah, esqueci: o maior legado da família — aquela *geladeira* velha e enferrujada. Parabéns, que tesouro.
As palavras cortaram como navalha. Lembrou-se das brigas, dos gritos, das lágrimas. A avó, mulher de nome incomum, odiara o genro desde o início. *”Esse homem é um parasita, Beatriz”*, dizia, severa. *”Boca de mel, coração de fel. Cuidado, que ele te esvazia e te descarta.”* E ele, em troca, chamava-a de *”bruxa velha”*. Quantas vezes se vira no meio do fogo cruzado, tentando apaziguar? Quantas lágrimas dera, acreditando que o amor bastaria? Agora entendia: a avó sempre soubera.
— Sobre o teu *’futuro brilhante’* — continuou Ricardo, regozijando-se na crueldade. Levantou-se, alisando o paletó caro. — Amanhã não precisas voltar ao escritório. Já assinei a tua demissão. Agora, querida, até essa *geladeira* vai parecer luxo. Vais catar comida no lixo e lembrar-te de mim com saudade.
Era o fim. Não só do casamento, mas da vida que construíra ao redor dele. A última réstia de esperança morrera. Em seu lugar, brotou um ódio claro e glacial.
Beatriz ergueu os olhos vazios, mas não respondeu. Para quê? Levantou-se em silêncio, pegou a mala já arrumada e saiu, ignorando suas gargalhadas.
A rua acolheu-a com um vento frio. Parou sob um poste de luz fraco, as malas pesadas aos pés. À frente, erguia-se um prédio de nove andares — a casa da sua infância, onde os pais viveram.
Anos sem pisar ali. Depois do acidente que levou seus pais, a avó vendera o próprio apartamento e mudara-se para lá, criando-a. Aquelas paredes guardavam dor demais, e, ao casar-se com Ricardo, evitara o lugar, encontrando-se com Alexandrina em qualquer outro sítio.
Agora, era seu único refúgio. Lembrou-se da avó — sua rocha, sua família. E quantas vezes a negligenciara, presa ao trabalho na empresa do marido e à ilusão de salvar um casamento falido. A culpa queimou-lhe o peito. As lágrimas, contidas o dia todo, jorraram. Ali ficou, minúscula e perdida, sacudida por soluços silenciosos.
— Tia, precisa de ajuda? — uma voz fina, rouca, quebrou o pranto.
Era um menino de uns dez anos, casaco largo e tênis gastos. Sujo, mas com olhos claros, quase adultos.
— Não, obrigada — ela murmurou, a voz trêmula.
Ele franziu a testa.
— Se tá chorando na rua com mala, não tá feliz — disse, prático. — Me chamo Tiago.
— Beatriz — suspirou ela, sentindo o nó na garganta afrouxar. — Está bem, Tiago. Ajuda-me.
A porta do apartamento rangeu, revelando poeira e sombras. Tudo coberto por lençóis brancos, o ar mofado de abandono. O menino colocou a mala no chão e avaliou o cenário.
— Ih, tá largado. Se a gente limpar junto, em uma semana fica bom.
Beatriz sorriu fracamente.
Naquela noite, depois de um jantar simples — pão, queijo, leite —, ele contou sua história, sem drama: pais bêbados, incêndio, orfanato, fuga.
— Não quero ir pra lá — disse, encarando o copo vazio. — Dizem que é caminho pra cadeia. Melhor a rua.
— Isso é mentira — ela respondeu, a própria dor esquecida diante da dele. — Nada te define, só tu mesmo.
Ele olhou-a, pensativo.
Pela manhã, Beatriz deixou uma nota: *”Volto logo. Tem leite na geladeira. Não saias.”*
O divórcio foi humilhante. Ricardo pintou-a como preguiçosa, aproveitadora. Ela calou-se, sentindo-se suja. Ao sair do tribunal, só havia vazio.
No apartamento, a velha geladeira *Consul* parecia uma relíquia absurda. Tiago bateu nos lados enferrujados.
— Nossa, tá velha! Isso ainda liga?
— Não — ela suspirou. — É só… uma lembrança.
No dia seguinte, puseram-se a limpar. Conversaram, riram, esfregaram paredes. E, aos poucos, o peso no peito de Beatriz aliviava.
— Quando crescer, vou ser maquinista — ele disse, sonhador. — Levar trens pra longe.
— Boa ideia. Mas tem que estudar.
Ele encolheu os ombros. — Se for preciso, eu estudo.
Mas não parava de olhar para a geladeira.
— Tia, tem algo errado aqui — insistiu, tocando o lado direito. — Essa parte é mais grossa.
Ela riu, mas, ao apalpar, sentiu a diferença. Com uma faca, descobriram um compartimento oculto.
Dentro, pacotes de euros e joias: um anel de esmeralda, brincos de diamante, um colar de pérolas. Ficaram paralisados.
Beatriz entendeu: a avó desconfiara de bancos. Escondera tudo ali, para ela. Um plano de fuga.
Agarrou Tiago, chorando.
— Agora está tudo bem. Posso adotar-te. Terás uma casa, escola, futuro.
Ele fitou-a, os olhos úmidos de esperança.
— Sério?… Quer mesmo ser minha mãe?
— Quero.
Os anos voaram. Com parte do dinheiro, compraram um apartamento claro, espaçoso. Tiago, inteligente, recuperou o tempo perdido, entrou na faculdade de economia. Beatriz formou-se, abriu uma consultoria. A vida renascera.
Uma década depois, um jovem alto, de terno impecável, ajustava a gravata.
— Mãe, como estou?
— Perfeito — ela sorriu. — Mas não fiques convencido.
— Jamais — ele gracejou. — Ah, o professor Nuno ligou. Ele é boa pessoa, e tu gostas dele.
— Hoje é teu dia. Vamos, que vamos nos atrasar.
No auditório, entre os convidados, ela reconheceu Ricardo, mais velho, mais gordo, mas com o mesmo sorriso arrogante. O coração gelou, mas não tremeu.
Quando Tiago subiu ao púlpito, discursou firme:
— Hoje contarei uma história… Fui um menino de ruaEle olhou para Ricardo, agora pálido de raiva, e concluiu: “E ao senhor, obrigado por ter sido tão mesquinho — foi a melhor coisa que fez por nós”.