Quando o João ainda não tinha cinco anos, o seu mundo desmoronou. A mãe já não estava mais ali. Ele ficou parado no canto da sala, imóvel, sem entender — o que estava a acontecer? Porque é que a casa estava cheia de estranhos? Quem eram aquelas pessoas? Porque é que todos estavam em silêncio, tão esquisitos, sussurrando e desviando o olhar?
O menino não percebia porque ninguém sorria. Porque lhe diziam “Aguenta, miúdo” e o abraçavam, mas como se ele tivesse perdido algo importante. E ele só não via a mãe.
O pai andou o dia todo distante. Nem uma vez se aproximou, não o abraçou, não disse uma palavra. Só ficou sentado num canto, vazio e distante. João chegou perto do caixão, olhou para a mãe. Ela não era a mesma — sem calor, sem sorriso, sem canções de embalar. Pálida, fria, parada. Aquilo assustava-o. E ele já não teve coragem de chegar mais perto.
Sem a mãe, tudo ficou diferente. Cinzento. Vazio. Dois anos depois, o pai casou-se outra vez. A nova mulher — a Teresa — nunca fez parte do seu mundo. Pelo contrário, sentia-se irritada com ele. Rezingava por tudo, implicava, como se procurasse motivos para estar zangada. E o pai ficava calado. Não o defendia. Não interferia.
João sentia todos os dias a dor que guardava dentro de si. A dor da perda. A saudade. E cada dia aumentava o desejo de voltar àquela vida em que a mãe estava viva.
Hoje era um dia especial — o aniversário dela. De manhã, João acordou com uma ideia: tinha de ir ao cemitério levá-la flores. Os lírios brancos eram os preferidos dela. Ele lembrava-se deles nas fotografias ao lado do sorriso da mãe, tão brilhantes como porcelana.
Mas onde arranjar dinheiro? Decidiu pedir ao pai.
“Pai, podes dar-me um bocado de dinheiro? É muito importante…”
Ainda não tinha explicado quando a Teresa entrou na sala:
“Isto agora! Já estás a exigir dinheiro ao teu pai? Tens alguma noção do trabalho que custa ganhar isto?”
O pai ergueu os olhos, tentou acalmá-la:
“Teresa, deixa-o explicar. Filho, diz lá, para que precisas?”
“Quero comprar flores para a mãe. Lírios brancos. Hoje é o aniversário dela…”
A Teresa bufou:
“Ah, pois claro! Flores! Dinheiro para flores! Queres que o levemos também a um restaurante? Arranja qualquer coisa do jardim, isso serve!”
“Não há lá lírios,” respondeu o João, baixinho mas firme. “Só na florista.”
O pai olhou para o filho, depois para a mulher:
“Teresa, vai tratar do almoço. Estou com fome.”
Ela saiu, resmungando. O pai voltou ao jornal. E João percebeu — não ia receber dinheiro. Nada mais foi dito.
Foi para o quarto em silêncio, pegou no mealheiro velho. Contou as moedas. Era pouco. Mas talvez chegasse?
Sem perder tempo, correu até à florista. Lá estavam os lírios na montra — brancos, quase brilhantes. Ele parou, segurando a respiração.
Depois entrou.
“O que queres?” perguntou a florista, desconfiada. “Aqui não tens brinquedos nem doces, só flores.”
“Eu quero comprar mesmo. Os lírios… Quanto custa?”
Ela disse o preço. João tirou todas as moedas do bolso, mas não chegava nem à metade.
“Por favor… Posso trabalhar aqui! Limpar, arrumar, o que precisar… Só me deixa levar os lírios, eu depois pago!”
“Estás a brincar?” ela resmungou. “Achas que isto é caridade? Vai-te embora senão chamo a polícia!”
Mas João não desistiu. Ali estava um senhor que assistiu à cena. Entrou e perguntou à florista porque gritava com o miúdo.
“E tu, quem és? Não te metas!”
Ele ignorou-a e virou-se para o João:
“Olá, amigo. Chamo-me António. Conta-me, porque queres os lírios?”
João limpou as lágrimas:
“É para a minha mãe… Ela gostava muito… Já morreu há três anos. Hoje faz anos.”
António sentiu um nó na garganta. Ajoelhou-se ao lado dele.
“A tua mãe teria orgulho em ti. Poucos se lembram assim.”
Depois, virou-se para a florista:
“Quero dois ramos desses lírios. Um para ele, outro para mim.”
João saiu com os lírios nos braços, a segurá-los como um tesouro. Virou-se para António:
“Seu António, posso dar-lhe o meu número? Eu pago-lhe, prometo.”
O homem sorriu:
“Não é preciso. Hoje também é um dia especial para mim. Há uma mulher que eu quero ver, e estes lírios eram os preferidos dela — a Irene.”
João ficou quieto. Os olhos dele iluminaram-se.
António continuou, perdido nos pensamentos.
Conhecera a Irene quando eram jovens. Apaixonaram-se, mas depois ele foi para o exército. Machucou-se, perdeu a memória. Quando acordou, ela tinha desaparecido. Anos depois, descobriu que ela tinha morrido. Nunca soube que ela teve um filho.
Até agora.
António olhou para o menino. Algo nele era familiar.
“João… és filho da Irene, não és?”
O miúdo assentiu.
António abraçou-o com força.
“Eu sou o teu pai. E nunca mais te vou deixar.”
João sorriu, como se já soubesse.
“Eu sempre achei que o Vítor não era o meu pai verdadeiro. A mãe contava histórias sobre ti.”
António levou-o para casa, onde o Vítor — o homem que cuidara deles — esperava.
“António… já sabes, não é?”
Ele confirmou.
“Se ele quiser, pode ficar contigo,” disse o Vítor. “A Irene nunca te esqueceu.”
António pegou na mão do filho.
“Vamos a casa.”
E João, finalmente, sentiu que o vazio dentro dele começava a encher-se.