Marido traiu em segredo, mas a esposa contábil já preparava sua surpresa há anos…

— Está tudo transferido. Não nos resta mais nada.

Ricardo atirou as palavras com a mesma leveza despreocupada com que costumava jogar as chaves do carro sobre a cómoda.

Nem sequer olhou para mim enquanto arrancava a gravata cara — um presente meu pelo nosso último aniversário.

Fiquei imóvel, com um prato nas mãos. Não de dor, não de choque. Era uma sensação estranha, quase física, como se um fio muito fino tivesse sido esticado no meu peito, prestes a vibrar e a soar a qualquer instante.

Dez anos. Dez longos anos eu esperei por este momento. Dez anos teci a minha teia pacientemente, como uma aranha, entrelaçando fios de vingança nas linhas secas dos relatórios financeiros do negócio dele.

— O que queres dizer com *tudo*, Ricardo? — A minha voz saiu assustadoramente calma, lisa como a superfície de um lago gelado. Coloquei o prato na mesa com cuidado. A porcelana tocou a madeira com um tilintar suave.

Ele virou-se finalmente. Nos olhos, um triunfo mal disfarçado e irritação. Esperava lágrimas, gritos, humilhação. Não lhe ia dar esse prazer.

— A casa, o negócio, as contas. Todos os ativos, Beatriz — pronunciou com deleite. — Vou recomeçar do zero. Uma vida nova.

— Com a Sofia?

O rosto dele congelou por um instante. Não esperava que eu soubesse. Os homens são tão ingénuos. Acham que uma mulher que tem na cabeça cada cêntimo do negócio de milhões não vai reparar nas despesas “representativas” mensais, equivalentes ao salário de um director.

— Isso não é da tua conta — respondeu bruscamente. — Ficas com o carro. E a casa por uns meses, até arranjares outro lugar. Não sou um monstro.

Sorriu. O sorriso de um predador saciado, certo de que a presa já estava na armadilha, só faltando dar o golpe final.

Avançei lentamente até à mesa, puxei uma cadeira e sentei-me. Apoiei as mãos no tampo, sem desviar o olhar.

— Então, tudo o que construímos em quinze anos, simplesmente deste a outra mulher? Ofereceste?

— Isto é negócios, Beatriz, não vais entender! — a voz dele tremeu, o rosto ficou manchado de vermelho. — É um investimento! No meu futuro! Na minha liberdade!

No *dele*. Não no nosso. Risquei-me da vida dele com tanta facilidade.

— Percebo — concordei, acenando. — Sou contabilista, lembras-te? Percebo de investimentos. Especialmente os de alto risco.

Olhava para ele e, dentro de mim, não havia dor nem raiva. Apenas um cálculo frio e preciso.

Ele não sabia que eu preparara a minha resposta durante dez anos. Desde o dia em que vi no telemóvel dele: *”Estou à tua espera, meu gatinho.”* Não gritei na altura. Só criei um novo ficheiro no computador e chamei-lhe *”Fundo de Reserva.”*

— Transferiste a tua quota do capital social por doação? — perguntei, como se falasse do tempo.

— O que é que isso interessa? — explodiu. — Acabou! Faz as malas!

— Só curiosidade — sorri levemente. — Lembras-te daquela cláusula no contrato social que alterámos em 2012? Quando expandimos a empresa?

Sobre a transferência de quotas a terceiros sem consentimento notarial de todos os sócios?

Ricardo paralisou. O sorriso começou a escorregar-lhe do rosto, como uma máscara a derreter. Não se lembrava. Claro que não. Nunca lia os documentos que eu lhe preparava. *”Beatriz, está tudo em ordem? Assino, confio em ti.”*

Assinava, seguro da minha lealdade. E tinha razão — eu era leal. Leal à causa. Até à última vírgula.

— Que disparate! — riu-se nervoso, mas o riso saiu rouco. — Que cláusula? Nunca existiu tal coisa.

— Existiu. “Horizonte Lda.” Somos sócios. Cinquenta por cinquenta. Artigo 7.4, alínea b). Qualquer transação de transferência — venda, doação — é nula sem o meu consentimento escrito, autenticado por notário.

Falei baixo, pausadamente, como uma professora a explicar a um aluno. Cada palavra enterrava-se na mente dele como um prego.

— Estás a mentir! — agarrou o telemóvel. — Vou ligar ao Vasco!

— Liga — encolhi os ombros. — O Dr. Vasco Albuquerque. Foi ele que autenticou o contrato social. Guarda tudo. É meticuloso.

Ricardo ficou imóvel. Percebeu que eu não estava a brincar. Vasco estava connosco desde o início. Não era homem dele. Era homem da lei.

Ele discou. Ouvi fragmentos: *”Vasco, a Beatriz diz que… o contrato de 2012… a cláusula da transferência…”*
Afastou-se para a janela, de costas para mim. Os ombros estavam tensos. Via-o a apertar o telemóvel, como se quisesse parti-lo. A conversa foi curta.

Quando se virou, o pânico estava estampado no rosto.

— Isto… é impossível! Vou recorrer ao tribunal! Nunca tiveste parte! Estava tudo em meu nome!

— Recorre — concordei. — Mas lembra-te: a tua doação é apenas papel velho. Já tentativa de desvio de bens por parte de um administrador — crime. Burla em causa qualificada.

Ele afundou-se na cadeira. O predador já não brincava. Diante de mim, um animal acuado.

— O que queres? — rosnou. — Dinheiro? Quanto? Dou-te uma indemnização!

— Não quero o teu dinheiro, Ricardo. Quero o que me pertence por direito. Os meus cinquenta por cento. E vou tê-los. E tu… ficas com o que tinhas quando chegaste a mim há quinze anos. Com uma mala e dívidas.

— Eu criei esta empresa!

— Tu foste a cara dela — corrigi. — Mas quem a construiu fui eu. Cada contrato, cada fatura, cada pagamento de impostos. Enquanto tu *”trabalhavas”* com a Sofia no hotel.

Ele ergueu-se, derrubando a cadeira.

— Vais pagar por isto, Beatriz! Destruo-te!

— Antes de me destruíres — falei baixinho —, liga à tua Sofia. Pergunta-lhe se recebeu a notificação de cobrança antecipada do empréstimo.

Ricardo ficou petrificado.

— Que empréstimo? Eu comprei-lhe a casa a dinheiro!

— Não — balancei a cabeça, sorrindo o meu sorriso mais profissional. — Não compraste. Convenceste-me de que era vantajoso para a empresa investir em imobiliário. A “Horizonte” comprou a casa. Depois *”vendeu-a”* à tua amante. Ela assinou um contrato de crédito com a nossa própria empresa — pelo valor total. Com a casa como garantia.

Eu preparei os documentos, Ricardo. Foi ideia tua, lembras-te? Só tornei-a real.

— E ontem, como única sócia legítima, iniciei o processo de execução da dívida.

A tua Sofia tem trinta dias para liquidar. Se não o fizer, a casa volta para a empresa. Ou seja, para mim.

O rosto dele deformou-se, como se uma máscara de cera derretesse em fúria e terror. Olhou para mim como para um fantasma — não para a Beatriz silenciosa e submissa que suportara anos de humilhação, mas para alguém estranho, calculista, perigoso.

Agarrou o telemóvel, sem me tirar os olEle ficou a olhar para mim, os dedos trémulos a hesitar sobre o ecrã, e percebeu, finalmente, que o seu reinado terminara — e o meu, agora tão silencioso quanto o meu cálculo, só começara.

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