Criança Descalça Encontrada Chorando em Estacionamento—Ninguém a Conhecia

*Dia 15 de Maio*

Estava junto a um carro preto, a chorar tão forte que o corpo inteiro tremia. Descalço, com o pescoço queimado de sol, os dedinhos agarrados à maçaneta como se ela cedesse se ele implorasse o suficiente.

Olhei em volta. Ninguém a correr. Ninguém a chamar por ele.

Ajoelhei-me. “Olá, amiguinho, onde estão os teus pais?”

Ele chorou ainda mais. “Quero voltar para dentro!”

“Dentro de quê?”, perguntei com calma.

Apontou para o carro. “Do filme! Quero voltar para o filme!”

Pensei que talvez se referisse ao cinema ali perto, tentei abrir a porta do carro—trancada. Espreitei para dentro. Nada. Nem cadeirinha, nem brinquedos. Nada.

Levei-o na direção do cinema, perguntando se tinha ido lá com alguém. Ele anuiu devagar. “Com o meu outro pai.”

Isso fez-me parar. “O teu outro pai?”

Anuiu de novo. “O que não fala com a boca.”

Antes que pudesse perguntar o que aquilo significava, um segurança do centro comercial chegou num carrinho de golfe. Expliquei tudo.

Percorremos a praça de alimentação, o parque infantil, até a segurança. Todos os pais que abordámos disseram o mesmo: “Desculpe, não é meu.”

A segurança reviu as câmaras.

E foi aqui que a coisa ficou estranha.

Ninguém o deixou ali.

Ninguém o acompanhou.

Ele apareceu.

Num momento, o estacionamento estava vazio. No seguinte, lá estava ele, descalço, ao lado do carro preto.

Depois, o segurança disse, “Espere… olhe para a sombra.”

Aproximei-me. E vi.

A sombra do miúdo segurava a mão de alguém.

O ar na sala ficou pesado. O segurança—Rui, segundo o crachá—reviu as imagens mais três vezes. Vimos todos a mesma coisa. Momento um: estacionamento vazio. Momento dois: um miúdo descalço. Mas a sombra? Estendia-se para o lado, os dedos a agarrarem algo que não estava lá.

Rui passou a mão pela nuca. “Isto é algum tipo de brincadeira?”

Eu ainda o tinha ao colo, agora calmo, com a cabeça pousada no meu ombro. A respiração tranquila, como se estivesse cansado, não assustado.

“Como te chamas, amiguinho?”, perguntei baixinho.

Murmurou algo que soou como “Gui.” Talvez “Guilherme.” Difícil dizer.

“Gui, sabes onde fica a tua casa?”

Abanou a cabeça.

Chamaram a polícia, claro. Protocolo. Mas tinha a certeza de que isto não se resolvia com protocolo.

Quando os agentes chegaram, expliquei tudo. Viram as imagens, fizeram as perguntas de sempre. O miúdo pouco respondeu. De vez em quando, sussurrava sobre “o outro pai,” mas quando pressionado, calava-se.

Levaram-no ao hospital para avaliação. Disseram que iriam contactar os serviços sociais. Deixei o meu número, caso ele se lembrasse de algo.

Aquilo devia ter sido o fim.

Não foi.

Duas noites depois, acordei com pancadas. Não na porta da frente—na janela do quarto.

Eram quase duas da manhã.

Primeiro, pensei que fosse um sonho. Mas então ouvi de novo, três batidinhas suaves no vidro.

Afastei a cortina.

Era ele. Gui. Descalço no relvado húmido. A mesma camisola amarela. O cabelo molhado, talvez do suor ou do nevoeiro.

Saí a correr, o coração aos saltos. “Gui?! Como—como chegaste aqui?”

Não respondeu. Estendeu-me um carrinho de brincar, um daqueles de metal, e colocou-o na minha mão. Estava quente, como se tivesse estado no bolso.

“Não gosto do hospital,” sussurrou. “Não me deixam falar com o meu pai.”

“Qual deles?”, perguntei, sabendo já a resposta.

“O que não fala.”

Levei-o para dentro, sem saber o que fazer. Liguei para a polícia. Chegaram em dez minutos, surpresos ao vê-lo no meu sofá.

“O miúdo desapareceu do hospital,” murmurou um deles. “A segurança diz que ele estava a dormir e, de repente, sumiu. As enfermeiras juram que a porta não abriu.”

Perguntei se tinham pistas. Abanaram as cabeças.

Antes de saírem, um dos agentes puxou-me de lado. “Disseste que ele falou num ‘outro pai’? O que não fala com a boca?”

“Sim.”

“Tivemos um caso há anos… parecido. Cidade diferente, mesma história. Um miúdo desapareceu por horas. Quando apareceu, dizia a mesma coisa. ‘O pai que fala sem boca.’ Ninguém acreditou nele.”

“Descobriram o que aconteceu?”

Hesitou. “Ele desapareceu outra vez. Desta vez, para sempre.”

Naquela noite, não consegui dormir. Pensei naquela sombra. No carrinho. Na forma como Gui aparecera, como um gato vadio que soubesse que eu não o rejeitaria.

Pesquisei. Artigos antigos, fóruns obscuros, relatórios policiais de outras cidades. Encontrei um relato—de três anos atrás—sobre uma menina que aparecera num parque de estacionamento.

Disseram que a “mãe silenciosa” a levara até lá. Depois, desapareceu de um lar adotivo, do quarto trancado.

Todas as histórias terminavam igual: aparição inexplicável, menção a um adulto silencioso, breve estadia, depois partida.

Algo acontecia. Algo que ninguém queria acreditar.

No dia seguinte, fui ao hospital. Tentei obter mais informações. A equipa foi evasiva, citando privacidade. Deixei o meu número outra vez. Disse que queria ajudar. Que estava disposto a acolhê-lo, se necessário.

A sair, passei por um funcionário da limpeza com um carrinho de panos e produtos. Olhou para mim de repente e disse, “Aquele miúdo não está perdido. Está à procura.”

“À procura do quê?”

Não respondeu. Entrou no elevador e desapareceu.

Três noites depois, aconteceu outra vez.

Desta vez, ouvi risos. Agudos, ecoando pelo corredor.

Agarrei uma lanterna e abri a porta do quarto devagar.

Gui estava ali, sentado no chão, a empilhar livros.

Olhou para mim e sorriu. “Ele trouxe-me outra vez.”

Ajoelhei-me. “Quem, Gui? O pai silencioso?”

Anuiu. “Ele diz que és seguro. Como a senhora antes.”

“Que senhora?”

Pensou um momento. “A que cantava para as plantas.”

O sangue gelou-me. Era a minha tia Lúcia. Criou-me depois dos meus pais morrerem num acidente. Costumava cantar para o jardim, dizia que as rosas cresciam melhor assim. Morreu há seis anos.

“Não há como saberes isso,” murmurei.

Inclinou a cabeça. “Ele mostrou-me.”

Desta vez, não chamei a polícia. Não sabia o que dizer.

Em vez disso, fiz panquecas.

Sentámo-nos na cozinha, ele a sorrir entre garfadas, como se nada fosse estranho.

“Sabes que não posso ficar contigo, certo?”, disse suavemente.

“Eu sei. Ele só queria que visses.”

“O quê?”

“Que nem tudo o que parece perdido é por acidente.”

Entregou-me um papel dobradoE quando abri o papel, era um desenho de três figuras a dançar sob a lua—eu, ele, e uma silhueta sem rosto, mas com os braços abertos como se nos abraçasse a ambos.

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