Ele estava ao lado de um sedã preto, chorando tão forte que o corpo todo tremia. Descalço, com queimaduras de sol subindo pelo pescoço, os dedinhos agarrados à maçaneta como se ela pudesse abrir se ele suplicasse o suficiente.
Olhei ao redor do estacionamento. Ninguém correndo. Ninguém chamando por ele.
Ajoelhei-me. “Ó amiguinho, onde está a tua mãe ou pai?”
Ele chorou ainda mais. “Quero voltar para dentro!”
“Dentro de onde?”, perguntei com cuidado.
Ele apontou para o carro. “Do filme! Quero voltar para o filme!”
Pensei que talvez ele se referisse ao cinema na rua de trás, então tentei abrir a porta do carro—trancada. Olhei para dentro. Nada. Nem cadeirinha, nem brinquedos, nada.
Levei-o na direção do cinema, perguntando se ele tinha ido lá com alguém. Ele acenou devagar. “Com o meu outro pai.”
Isso me gelou. “O teu outro pai?”
Ele confirmou com a cabeça. “Aquele que não fala pela boca.”
Antes que eu pudesse perguntar o que aquilo significava, um segurança do shopping chegou num carrinho de golfe. Expliquei tudo.
Percorremos com o miúdo a praça de alimentação, o parquinho, até a segurança. Todos os pais que abordamos disseram a mesma coisa: “Desculpe, não é meu.”
A segurança puxou as imagens das câmaras.
E foi aí que ficou esquisito.
Ninguém o deixou lá.
Ninguém o acompanhou.
Ele apareceu.
Num instante, o estacionamento estava vazio—no seguinte, lá estava ele, descalço, ao lado do sedã preto.
Então o segurança disse: “Espere… olhe para a sombra.”
Aproximei-me. E vi.
A sombra do miúdo estava segurando a mão de alguém.
O ar na sala de segurança ficou pesado. O segurança—Fernando, segundo o crachá—reviu as imagens mais três vezes. Todos vimos a mesma coisa. Primeiro quadro: estacionamento vazio. Segundo quadro: um menino descalço. Mas a sua sombra? Estendia-se para o lado, os dedos abertos, agarrando algo que não estava lá.
Fernando esfregou a nuca. “Isto é algum tipo de brincadeira?”
Eu ainda segurava o miúdo, que agora estava calado, com a cabeça encostada no meu ombro. A respiração dele estava tranquila, como se estivesse cansado, não assustado.
“Qual é o teu nome, amiguinho?”, perguntei baixinho.
Ele murmurou algo que soou como “Tiago”. Talvez “Tomás”. Difícil saber.
“Tiago, sabes onde fica a tua casa?”
Ele sacudiu a cabeça.
A segurança chamou a polícia, claro. Protocolo. Mas não conseguia sacudir a sensação de que isto não era algo que se resolvesse com protocolo.
Quando os agentes chegaram, contei tudo. Eles viram as imagens, fizeram as perguntas de sempre. O menino não respondeu muito. De vez em quando, sussurrava sobre “o outro pai”, mas quando pressionado, calava-se.
Levaram-no a um hospital local para avaliação. Disseram que notificariam os serviços sociais. Deixei o meu número, caso ele se lembrasse de algo ou precisassem de mais informações.
Isso devia ter sido o fim.
Não foi.
Duas noites depois, acordei com batidas. Não na porta da frente—na janela do quarto.
Era quase duas da manhã.
A princípio, pensei que estava a sonhar. Mas então ouvi de novo, três pancadinhas suaves no vidro.
Afastei a cortina.
Era ele. Tiago. Descalço, na relva úmida. Ainda com a mesma camisola amarela. O cabelo dele estava molhado, talvez de suor ou do nevoeiro.
Corri para fora, o coração a bater forte. “Tiago?! Como—como chegaste aqui?”
Ele não falou. Estendeu-me um carrinho de brincar, daqueles de metal, e colocou-o na minha mão. Estava quente, como se tivesse estado no bolso.
“Não gosto do hospital”, sussurrou. “Não me deixam falar com o meu pai.”
“Qual deles?”, perguntei, embora já soubesse a resposta.
“O quieto.”
Levei-o para dentro, sem saber o que mais fazer. Liguei para a polícia, expliquei tudo. Chegaram em dez minutos, surpresos ao encontrá-lo enrolado no meu sofá.
“O miúdo desapareceu do hospital”, murmurou um deles. “A segurança diz que ele estava a dormir e, no instante seguinte, sumiu. As enfermeiras juram que a porta não abriu.”
Perguntei se havia pistas. Abanaram as cabeças.
Antes de saírem, um dos agentes puxou-me de lado. “Disseste que o miúdo falou num ‘outro pai’? Aquele que não fala pela boca?”
“Sim.”
“Tivemos um caso há anos… parecido. Cidade diferente, mesma história. Um miúdo desapareceu por horas. Quando apareceu, só dizia a mesma coisa. ‘O pai que fala sem boca.’ Ninguém acreditou nele.”
“Descobriram o que aconteceu?”
O agente hesitou. “Ele desapareceu de novo. Desta vez, para sempre.”
Naquela noite, não consegui dormir. Não parava de pensar naquela sombra. No carrinho. Na forma como Tiago aparecera como um gato abandonado que, de algum modo, sabia que eu não o rejeitaria.
Pesquisei velhas notícias, fóruns obscuros, relatórios policiais de cidades vizinhas. Encontrei algo—um relato de três anos atrás, sobre uma menina que aparecera do nada num parque de estacionamento de uma livraria.
Ela dissera que a “mãe silenciosa” a levara até ali. Depois, desaparecera da casa de acolhimento duas semanas depois, direto do quarto trancado.
Todas as histórias terminavam igual: aparecimento inexplicável, menção a um adulto silencioso, breve estadia, depois desaparecimento.
Algo estava a acontecer. Algo que ninguém queria acreditar.
No dia seguinte, fui ao hospital. Tentei obter mais informações. Os funcionários foram evasivos, citando leis de privacidade. Deixei o meu número novamente. Pedi que dissessem à assistente social que eu queria ajudar. Que estava disposto a acolhê-lo, se necessário.
Na saída, passei por um funcionário da limpeza com um carrinho cheio de panos e garrafas de lixívia. Ele olhou para mim de repente e disse: “Aquele miúdo não está perdido. Está à procura.”
Virei-me. “À procura do quê?”
O homem não respondeu. Empurrou o carrinho para o elevador e desapareceu.
Três noites depois, aconteceu de novo.
Desta vez, ouvi risadas. Agudas, ecoando pelo corredor.
Agarrei uma lanterna e abri devagar a porta do quarto.
Tiago estava lá, sentado no chão, empilhando livros numa torre.
Olhou para mim. Sorriu. “Ele trouxe-me de volta.”
Ajoelhei-me. “Quem, Tiago? O pai quieto?”
Ele acenou. “Ele diz que tu és segura. Como a senhora antes.”
“Que senhora?”
Tiago pensou um pouco. “Aquela que canta para as plantas.”
O meu sangue gelou. Era a minha tia Maria, já falecida. Ela criou-me depois que os meus pais morreram num acidente de carro. Costumava cantarolar para o jardim, dizia que ajudava as rosas a crescer. Morreu há seis anos.
“Não há como saberes isso”, murmurei.
Ele inclinou a cabeça e sussurrou: “Ele vai trazer mais, mas você já sabe como cuidar deles,” e então desapareceu como névoa ao amanhecer.