**Diário Pessoal**
As pessoas tiravam selfies em frente à estátua. Sorrisos. Sinais de paz. Um casal discutia baixinho, como se o soldado de granito pudesse ouvir. Mas eu só via ele.
O homem na cadeira de rodas, curvado como se o peso daquele monumento pressionasse seus ombros. O casaco rasgado na manga. O boné na cabeça dizia “VETERANO”, nada mais. Como um rótulo que ele não pediu. E ao lado dele—um cão cansado, bebendo de um copo de papel que ele segurava como se fosse porcelana. Sem coleira. Sem ordens. Apenas confiança.
Fiquei ali mais tempo do que pretendia, segurando meu café como um tolo. Observando-os. Ele nem sequer ergueu os olhos. Não pediu esmola. Apenas alimentou o cão primeiro.
Atingiu-me de lado. Aquele era suposto ser um lugar de honra. Granito e nomes e discursos uma vez por ano. Mas ali estava um homem que realmente serviu… esquecido à sua base.
Uma mulher passou, deixou cair uma nota de euro no seu colo sem parar. A nota grudou na sua perna. Ele não se mexeu. O cão sim—virou-se e olhou para mim, como se soubesse que eu os observava.
Foi então que me aproximei. Disse: “Senhor… precisa de algo?”
Ele acenou uma vez. Quase imperceptível. Depois limpou a garganta, a voz rouca e baixa, e disse: “Um nome. Para ele.”
Pisquei. “Para o seu cão?”
Ele sorriu levemente, como se doesse fazê-lo. “Está comigo há muito tempo. Salvou-me mais vezes do que consigo contar. Mas nunca lhe dei um nome. Não achava que tinha o direito.”
Ajoelhei-me devagar, deixando o cão cheirar minha mão. Era velho, focinho grisalho, mas os olhos afiados. Gentil. Leal.
“Por que agora?”, perguntei. “Por que quer dar-lhe um nome hoje?”
O homem olhou para o monumento. “Hoje foi o dia em que perdi o meu esquadrão. Todos. Mesma hora. Mesma tempestade de areia. Nem sequer nos despedimos. Mas este cão… foi a única coisa que saiu daquele deserto comigo. Acho que ele merece mais do que silêncio.”
Não sabia o que dizer. Olhei para o memorial novamente, mas agora parecia frio. Vazio. Como se não alcançasse as pessoas para quem foi construído.
“Chamo-me Miguel”, ofereci. “Talvez… talvez possa ajudar.”
O homem acenou novamente. “Eu sou o Rui.”
Rui tinha uma voz que parecia ter contado histórias demais e cansado de ouvir-se a si mesma. Ainda assim, havia algo sólido nela. Como se, quando falava, importasse.
Tirou de um saco de lona desgastado uma foto amarelada, curvada nas bordas. Mostrava cinco homens ao lado de um jipe, todos sorridentes, braços sobre os ombros uns dos outros. “Eram meus irmãos”, disse. “O último bom dia que tivemos.”
O cão sentou-se ao lado dele, como se já soubesse os nomes. Como se lembrasse o riso antes dos gritos.
“Ele sempre esteve lá?”, perguntei.
Rui acenou. “Encontrei-o numa patrulha. Estava faminto, mal se mexia. Levei-o quando não devia. Mas ele ficou comigo. Até no meio do fogo.”
Houve uma longa pausa. Turistas passavam, tiravam fotos, alheios. Alguns olhavam para Rui, mas desviavam o olhar rapidamente. Como se a culpa queimasse mais rápido que a compaixão.
“Conte-me sobre o fogo”, pedi, suavemente.
Rui olhou para mim por um momento. Depois, com um suspiro, começou a falar.
Era o tipo de história que torcia o estômago. O seu pelotão tinha caído numa emboscada. O veículo incendiara-se. Rui tentara puxar os amigos para fora, mas as chamas consumiram-nos mais rápido do que ele conseguia mover-se. Ele queimou-se na tentativa. Foi então que o cão—que se escondera debaixo do veículo—mordeu a alça do colete de Rui e arrastou-o para longe.
“Ele não devia estar vivo”, disse Rui. “Nem eu. Mas aqui estamos.”
Olhei para o cão novamente. Ele inclinou a cabeça, como se compreendesse o peso daquela história.
“Acho”, disse, “que ele já tem um nome.”
Rui ergueu uma sobrancelha.
“Honra”, eu disse. “Ele é a sua Honra. Carrega a memória deles, não é?”
Os olhos de Rui encheram-se de lágrimas, mas ele pestanejou e desviou o olhar. “É um bom nome”, murmurou. “Honra.”
Tirei do bolso o sanduíche que não tinha tocado. Parti-o ao meio, ofereci a Rui, depois ajoelhei e dei o resto à Honra. Ambos aceitaram como se fosse um banquete.
Pensei que seria o fim. Um momento partilhado. Um gesto discreto. Mas Rui olhou para mim e perguntou: “Tens algum sítio para estar?”
“Não, porquê?”
“Queres caminhar connosco?” Fez um gesto para as rodas da cadeira. “Bem, ‘rolar’, suponho.”
Então eu caminhei. Ele rolou. Honra trotou ao nosso lado. E Rui falou.
Ele não falava como alguém que se descarrega. Mas como quem planta pedaços de si pelo caminho, como sementes, caso não voltasse.
Contou-me sobre crescer no Alentejo. Sobre querer ser mecânico antes da guerra o chamar. Sobre as cartas que escrevia a uma rapariga chamada Joana, que parou de responder depois da sua terceira missão.
“Não a culpo”, disse. “A guerra muda-nos. Às vezes para alguém que já não pertence a lugar nenhum.”
Não discuti. Apenas ouvi. Parecia ser o que ele mais precisava.
Acabámos num parque pequeno atrás da biblioteca. Calmo. Sombreado. Rui estacionou a cadeira perto de um banco, e eu sentei-me. Honra deitou-se na relva, como se a tivesse merecido.
“Tens família?”, perguntou Rui.
“Só um irmão no Porto. Não falamos muito.”
Rui acenou devagar. “É curioso como passamos tanto tempo a tentar sobreviver e depois esquecemo-nos de viver.”
Aquilo tocou-me mais do que esperava. Talvez porque soasse verdade.
Ofereci-me para lhe pagar o almoço, mas ele recusou. Disse que tinha tudo o que precisava. Mas reparei que os sapatos dele estavam a desfazer-se. As solas pareciam ter atravessado várias vidas.
Então arranjei uma desculpa para me afastar e liguei a uma amiga que gerEla prometeu encontrar-nos em meia hora, e quando chegou, trouxe não só comida e roupas para Rui, mas também uma nova coleira vermelha para Honra, como se já soubesse que aqueles dois mereciam um pouco de luz no fim do caminho.