Sem Lar, Mas com Aventura no Coração

**15 de Maio, 2024**

Eles ainda estão a dormir. Os três, amontoados debaixo daquele cobertor fino azul como se fosse a coisa mais confortável do mundo. Observo os seus peitos a subir e descer e finjo, por um segundo, que isto são férias.

Armámos a tenda atrás de uma área de serviço, já depois da saída de Mafra. Tecnicamente não é permitido, mas está calmo, e o segurança olhou para mim ontem como quem diz que não nos vai expulsar. Por agora.

Disse aos miúdos que íamos acampar. “Só nós, os homens,” como se fosse uma aventura. Como se não tivesse vendido a minha aliança três dias antes para pagar gasolina e manteiga de amendoim.

A verdade é que eles são pequenos demais para perceber a diferença. Acham que dormir em colchões insufláveis e comer cereais de copos de papel é divertido. Acham que sou corajoso. Que tenho um plano.

Mas a realidade é que tenho ligado para todos os abrigos desde aqui até Santarém e ninguém tem lugar para quatro. O último disse que talvez na terça. Talvez.

A mãe deles foi-se embora há seis semanas. Disse que ia para casa da irmã. Deixou um bilhete e meio frasco de Ben-U-Ron em cima da mesa. Nunca mais soube dela.

Tenho-me aguentado, por um fio. Lavo-nos nas casas de banho das bombas de gasolina. Invento histórias. Mantenho as rotinas da hora de dormir. Meto-os na cama como se tudo estivesse bem.

Mas ontem à noite… o meu do meio, o Tomás, murmurou qualquer coisa a dormir. Disse: “Pai, gosto mais disto do que do motel.”

E isso quase me partiu.

Porque ele tinha razão. E porque sei que esta noite pode ser a última em que consigo fingir.

Logo que acordem, tenho de lhes dizer uma coisa. Algo que tenho adiado.

E quando comecei a abrir o fecho da tenda—o Tomás mexeu-se. “Pai?” sussurrou, esfregando os olhos. “Podemos ir ver os patos outra vez?”

Referia-se aos do lago perto da área de serviço. Fôramos na noite anterior e ele rira mais do que ouvira há semanas. Forcei um sorriso.

“Sim, filho. Assim que os teus irmãos acordarem.”

Quando arrumámos as nossas poucas coisas e lavámos os dentes no lavatório atrás do edifício, o sol já aquecia a relva. O mais novo, o Rui, agarrou a minha mão e cantarolou baixinho, enquanto o mais velho, o Duarte, chutou pedras e perguntou se íamos passear hoje.

Estava prestes a dizer-lhes que não podíamos ficar mais uma noite quando a vi.

Uma senhora, talvez nos seus sessenta e muitos, aproximou-se de nós com um saco de papel numa mão e uma garrafa térmica na outra. Vestia uma camisa de flanela gasta e tinha uma trança comprida nas costas. Pensei que fosse perguntar se estávamos bem—ou pior, mandar-nos embora.

Em vez disso, sorriu e estendeu o saco.

“Bom dia,” disse. “Os meninos querem pequeno-almoço?”

Os miúdos iluminaram-se antes de eu responder. Dentro do saco estavam bolinhos quentes e ovos cozidos, e a garrafa tinha chocolate quente. Não café—chocolate. Para eles.

“Chamo-me Dona Estela,” disse, sentando-se no meio-fio connosco. “Tenho-vos visto aqui há algumas noites.”

Acenei, sem saber o que dizer. Não queria piedade. Mas o rosto dela não mostrava pena. Só… bondade.

“Já estive numa situação difícil,” acrescentou, como se lesse os meus pensamentos. “Não foi a acampar. Dormi numa carrinha da igreja durante dois meses com a minha filha em 99.”

Pisquei os olhos. “A sério?”

“Sim. As pessoas passavam por nós como se não existíssemos. Decidi não fazer o mesmo.”

Não sei o que me deu, mas contei-lhe a verdade. Sobre o motel. Sobre a mãe. Sobre os abrigos que diziam “talvez.”

Ela apenas ouviu, acenando devagar.

Depois, disse algo que não esperava: “Venham comigo. Conheço um sítio.”

Hesitei. “É um abrigo?”

“Não,” respondeu. “É melhor.”

Seguimos o seu carro velho por uma estrada de terra batida, as minhas mãos a apertar o volante, o coração aos saltos. Olhava para trás, para os miúdos, que riam de algo que o Rui dissera, alheios a que estávamos atrás de um milagre.

Chegámos a uma quinta. Cercada, com um celeiro vermelho, uma casinha branca, umas cabras no quintal. Um letreiro no portão dizia: Projeto Segunda Oportunidade.

Dona Estela explicou na varanda. Era uma comunidade—mantida por voluntários—que acolhia famílias em crise. Sem burocracia. Sem formulários. Só pessoas a ajudar pessoas.

“Vão ter um teto, comida, e tempo para se recomporem,” disse.

Engoli em seco. “Qual é o senão?”

“Não há senão,” respondeu. “Só ajudar um pouco. Dar de comer aos animais. Limpar. Talvez construir algo, se souberem.”

Naquela noite, dormimos numa cama de verdade. Os quatro no mesmo quarto, mas com paredes, luz e uma ventoinha que zumbia suave. Meti-os na cama e sentei-me no chão a chorar como uma criança.

Na semana seguinte, cortei lenha, arranjei uma cerca e aprendi a ordenhar uma cabra. Os miúdos fizeram amizade com outra família que lá estava—uma mãe solteira com gémeas. Perseguiram galinhas, colheram amoras e aprenderam a dizer “obrigado” a cada refeição.

Uma noite, sentei-me com Dona Estela na varanda. “Como descobriu este lugar?” perguntei.

Ela sorriu. “Não descobri. Criei-o. Comecei pequeno. Era enfermeira, herdei um terreno da minha avó. Decidi ser a bóia de alguém, em vez de uma memória distante.”

As suas palavras ficaram comigo.

Duas semanas viraram um mês. Entretanto, juntei algum dinheiro com biscates na vila. Uma oficina deixou-me aprender com os mecânicos, e um dia o dono, um homem franzino chamado Zé, entregou-me um envelope e disse: “Aparece na segunda se quiseres mais.”

Ficámos na quinta mais seis semanas. Quando saímos, tinha um part-time fixo, suficiente para alugar um T1 na periferia. A renda era baixa porque o chão era inclinado e os canos resmungavam à noite, mas era nosso.

Mudámo-nos um dia antes do início das aulas.

Os miúdos nunca perguntaram por que saímos do motel ou por que ficámos na tenda. Chamaram-lhe sempre “a aventura.” Até hoje, o Tomás conta às pessoas que vivemos numa quinta e construímos uma cerca com as cabras a observar.

Mas algo aconteceu três meses depois da mudança.

Num domingo de manhã, encontrei um envelope debaixo do tapete. Sem nome. Só “Obrigada” escrito na frente.

Dentro, havia uma foto antiga da Dona Estela, jovem, com um bebé ao colo, em frente ao mesmo celeiro. Atrás, uma nota em letras desiguais: “O que deste à minha mãe, ela deu a ti. Faz o mesmo quando puderes.”

Perguntei por toda a parte, mas ninguém soube quem o deixou. Dona Estela não atendeu mais o telefone. Quando voltei à quinta, estava vUm letreiro desbotado pendurado no portão dizia simplesmente: “Ajuda passou por aqui.”

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