**Diário, 12 de Maio**
A senhora de 87 anos despediu a enfermeira e contratou um motociclista tatuado no lugar. A família dela ameaçou declará-la incapaz.
Eu sou o vizinho do corredor de frente, e vi tudo da minha janela. O que os filhos dela não sabiam — o que ninguém sabia, exceto eu — era o verdadeiro motivo.
Chama-se Felicidade Mendes, mas todos a conhecem como Dona Feli. Vive há 43 anos no apartamento 4B. O marido, António, morreu em 2003. Os três filhos moram em cidades diferentes e visitam talvez duas vezes por ano.
Tem Parkinson avançado, osteoporose e uma solidão que dói nos ossos.
Mudei-me para o prédio há dois anos. Sou jornalista, trabalho em casa, e comecei a reparar. A agência de cuidadores mandava enfermeiras diferentes a cada semana.
Dona Feli tentava conversar, fazer amizade, mas elas só cumpriam o trabalho e iam embora. Davam-lhe de comer, banho, medicação. E desapareciam.
Começou a deixar a porta entreaberta durante o dia. Só um bocadinho. O suficiente para ouvir alguém no corredor. Para não sentir-se tão só. Eu acenava ao passar. Às vezes, parava para conversar. Ela contava-me do António, veterano da Guerra Colonial. Dos filhos, sempre “ocupados”. De como viajou o mundo e agora mal conseguia ir à caixa do correio sozinha.
O motociclista apareceu numa terça-feira de janeiro. Ouvi a porta abrir e espreitei pelo olho mágico. Lá estava ele. Um metro e noventa, tatuagens, barba até ao peito, colete de couro com remendos. Trazia sacos de compras.
Pensei que estivessem a roubar Dona Feli. Abri a porta: “Desculpe, posso ajudar?” Ele virou-se e sorriu. Um sorriso que lhe mudou o rosto. “Só estou a ajudar a Dona Feli com as compras. Ela chamou-me.”
A voz dela surgiu de dentro: “João, és tu? Entra, entra. E traz o vizinho bisbilhoteiro também.”
Segui-o, desconfiado. Dona Feli estava na sua poltrona, radiante. Há meses que não a via sorrir assim.
“Este é o João,” apresentou, orgulhosa. “O meu novo ajudante. Despedi a agência ontem.” Ele arrumou as compras como quem conhecia a casa.
“A Dona Feli gosta das bolachas na segunda prateleira,” disse. “E os saquinhos de chá na lata ao lado do fogão.”
Olhei para ela. “Despediu a agência? Os seus filhos sabem?” O sorriso desvaneceu-se um pouco. “Os meus filhos não precisam saber tudo. Ainda não morri, por mais que planeiem o meu funeral.”
João acabou de arrumar as compras e sentou-se no sofá. Aquele homem enorme sentou-se com um cuidado quase delicado. “Dona Feli, são horas do remédio. Quer que prepare?”
“Sim, querido.” Ele trouxe o organizador de comprimidos e um copo de água. Entregou-lhe com tanta gentileza. Ela tomou os comprimidos e afagou-lhe a mão. “Obrigada, meu amor.”
Tive de perguntar. “Como se conheceram?” Os olhos dela brilharam. “Ele tentou roubar-me a carteira.” Fiquei boquiaberto. João riu-se. “Não foi bem assim, Dona Feli.”
“Chegou perto,” ela insistiu. “Conta-lhe.”
João explicou. Há três semanas, passou de mota pelo nosso bairro. Viu Dona Feli sentada no banco em frente ao prédio. Conseguira descer sozinha, mas o elevador estava avariado e não podia subir.
“Estava lá, no frio, sem casaco,” ele disse. “Parei e perguntei se precisava de ajuda. Ela disse que sim, mas que não tinha dinheiro para me pagar.” Sorriu. “Então, eu carreguei-a pelos quatro andares.”
Dona Feli interrompeu. “E quando chegámos, tentei dar-lhe a carteira. Pensei que era o que ele queria. O homem que me carregou. Assumi que era pelo dinheiro.” A voz ficou baixa. “Aprendi que todos querem algo.”
João continuou. “Disse-lhe que não queria dinheiro. Ela perguntou porque a ajudei. Respondi: porque precisava e eu estava ali.” Fez uma pausa. “Ela começou a chorar. Disse que há dez anos ninguém fazia nada por ela sem esperar pagamento ou reconhecimento.”
“Convidei-o para um chá,” ela prosseguiu. “E ele ficou. Duas horas. Falamos de tudo. Do seu clube de motas, do trabalho como carpinteiro, da filha, do António, da minha vida. Uma conversa de verdade. Como não tinha desde que o António morreu.”
“Quando saí, ela pediu que voltasse,” João disse. “E eu voltei. No dia seguinte, e no outro. Uma semana depois, despediu a enfermeira e pediu-me para ficar.”
Estava estupefacto. “Mas a agência, são profissionais. Têm formação.” A feição dela endureceu. “São estranhos que entram na minha casa, tratam-me como uma tarefa e vão-se embora. O João trata-me como uma pessoa.”
“Não faço isto por dinheiro,” ele acrescentou. “Dona Feli insiste em pagar, mas não é por isso que venho. Venho porque me lembra da minha avó. Morreu sozinha num lar enquanto eu estava no exército. Nunca pude despedir-me.” A voz quebrou. “Jurei que nunca deixaria outra avó sentir-se assim.”
Nas semanas seguintes, vi a rotina deles formar-se. João chegava às 9h. Ajudava-a a lavar-se, vestir-se, preparava o pequeno-almoço. Conversavam durante horas. Sobre a vida, perdas, tudo e nada.
Levava-a a passear quando o tempo permitia. Colocava-a numa cadeira de rodas que comprou do seu bolso e empurrava-a pelo bairro. Ao parque, à biblioteca, ao café onde ela e o António iam.
As pessoas olhavam. Aquele gigante tatuado com uma senhora frágil. Alguns assustavam-se, outros torciam o nariz. Dona Feli adorava. “Deixa-os olhar,” dizia. “Tenho o cuidador mais interessante da cidade.”
João começou a levá-la a eventos do clube de motas. Não a passeios, claro, mas a churrascos, ações de caridade. Ela tornou-se a avó do grupo. Trinta motociclistas chamavam-lhe “Dona Feli” e competiam para levar os melhores doces.
Uma vez, com lágrimas nos olhos, disse-me: “Há vinte anos que não me sentia tão viva.”
Até que os filhos descobriram. A filha, Catarina, ligou-me. Exigiu saber o que se passava. Por que um “criminoso” andava com a mãe? Estaria a roubá-la? Aproveitando-se?
Disse-lhe a verdade. A mãe estava mais feliz que há anos. Comia melhor, movia-se mais, ria, vivia. Catarina não quis saber. “Ela não está bem. O Parkinson afeta o juízo. Vamos pôr fim a isto.”
Duas semanas depois, apareceram todos. Os três filhos. Invadiram o apartamento enquanto João estava lá. Gritaram, acusaram-no de abuso, exploração, manipulação.
Dona Feli levantou-se da poltrona — coisa rara. “Saiam da minha casa.” Catarina tentou pegar-lhe na mão. “Mãe, estamos a tentar proteger-te. Esse homem é perigoso.”
“Este homem,” ela disse, a voz tremendo de raiva, “aparece aqui todos os dias”No fim, quando os seus filhos já tinham partido para sempre, foi nos braços do João que Dona Feli fechou os olhos pela última vez, sorrindo como quem encontrou a paz que há tanto tempo lhe faltava.”





