Sara Costa observava o vapor a dançar sobre a chávena de chá, fingindo estar hipnotizada pelo modo como o pires refletia a luz. O café na Rua das Flores era um daqueles lugares com ar parisiense, cadeiras de vime e vasos de alfazema; tinha-o escolhido porque, numa tarde de terça-feira, parecia uma pequena coragem apreciar uma beleza comum. Aos trinta e dois anos, aprendera que a coragem agora se vestia de gestos miúdos, pontos de confiança que cosia numa vida que já não se parecia com o mapa que outrora traçara.
Chegara quinze minutos mais cedo, ridiculamente preparada: o vestido bege favorito (aquele que a fazia sentir-se como a mulher de antes do acidente), batom num vermelho suave que a lembrava de que ainda possuía rostos para usar, o cabelo preso num carrapito solto que exigira mais esforço do que devia. Sentara-se na cadeira de rodas na mesa mais próxima do passeio, mãos cruzadas no regaço, à espera do homem cujas mensagens lhe pareceram sinceras e gentis — Miguel, que perguntara pelo seu trabalho artístico e pela exposição que mencionara, que não fizera alarido sobre a cadeira de rodas quando trocaram mensagens.
Viu-o do outro lado da rua, pontualíssimo. Ele parou, olhou em volta e, quando os olhos pousaram na cadeira, o rosto fechou-se como uma porta. Por um instante, observou-o como se fosse outra pessoa. O homem escreveu algo rápido e o telemóvel vibrou: *”Desculpa, surgiu um imprevisto. Não posso ir hoje. Boa sorte.”*
A boca ficou seca. Manteve-se imóvel, como se o corpo que a trouxera até ali pudesse aguentar mais uma deceção sem desmoronar. Sentiu o velho estilhaçar familiar: redução. Não era Sara, a pessoa com péssimos hábitos de café e uma risada meiga, mas *uma cadeira de rodas e uma história que faz os outros afastarem-se*.
Pensou em ir-se embora, para preservar a dignidade. *Acaba o chá primeiro*, disse a si mesma, como se um gole pudesse remendar o orgulho. Enxugou as lágrimas e puxou o caderno de desenhos da mala, fingindo esboçar algo. As mãos tremiam tanto que as linhas se dissolveram num mapa de aguarela.
Foi então que uma vozinha invadiu a cena como alguém a derramar um pote de estrelas no chão.
“Olá”, disse uma menina, séria como quem pondera cada palavra. Tinha tranças loiras com fitas vermelhas e um unicórnio de peluche apertado contra o peito, um sapato desapertado. Os olhos azuis, enormes de curiosidade. “Porque estás triste?”
Sara limpou as palmas das mãos e sorriu com a generosidade que reservava para crianças e cães. “Estou bem, querida”, disse. “Estás perdida? Onde está o teu—”
“O papá está ali”, respondeu a menina, apontando com um dedo pegajoso. Um homem aproximou-se, o casaco a esvoaçar como quem andara às voltas e fora atrasado pelo peso do mundo. Estaria nos trinta e poucos — bonito, sim, mas não do tipo que grita; antes do tipo que preenche uma sala com ordem silenciosa. Tinha o ar de quem está habituado a ser ouvido, a compostura de quem gere mais do que o próprio almoço.
“Inês”, chamou, suave, mas os olhos suavizaram-se ao pousar em Sara. Reparou nos vestígios de lágrimas, na cadeira vazia à frente dela, e algo na postura rígida abrandou.
“Desculpa se ela te assustou. Tem o hábito de fugir quando não estou a ver.” Olhou para o unicórnio. “É o Brilho? A semana passada, obrigou-me a batizar todos os brinquedos com ‘-inho’.”
“Brilho”, confirmou Inês e, com a solenidade de um juiz, fez a pergunta que as crianças fazem e os adultos temem responder: “Porque tens rodas?”
O rosto do pai tornou-se um repasso educado. “Inês, isso é indelicado—”
Sara interrompeu. “Não há problema, a sério. Podes perguntar.” Envolveu os dedos à volta do peluche que a menina lhe estendia como uma oferenda. O brinquedo estava gasto nas pontas e cheirava levemente a protetor solar com aroma a banana. Sorriu para a menina; o sorriso chegou como um pequeno sol.
“Tive um acidente”, explicou. “As minhas pernas não funcionam como as tuas, por isso uso esta cadeira para me movimentar. É como o teu pai usar o carro em vez de andar a pé para todo o lado.”
Inês acenou, como se a lógica do universo tivesse sido restaurada. “Posso sentar-me contigo? Pareces sozinha. A senhora deve querer ficar sozinha.”
Sara riu-se, macio e honesto. “Na verdade, adoraria companhia— se o teu pai deixar.”
O homem hesitou, a medir. “Está bem”, disse, sentando-se sem a tirar os olhos dela. “Vou buscar os cafés enquanto me contas tudo sobre o Brilho”, disse à filha. Inês saltou para a cadeira que a ausência de Miguel deixara vazia, colocando o unicórnio na mesa como quem traça fronteiras.
“O pai é o Tiago”, apresentou-se ao voltar, com duas chávenas e um pacote de sumo que Inês aceitou como um tesouro. “Tiago Marques.”
“Sara Costa”, respondeu ela, envergonhada pelo brilho residual nos olhos. Nunca gostara de pena; a palavra sabia-lhe a areia na boca.
Conversaram porque — por vezes é assim — as palavras fluem mais fácil entre estranhos do que entre quem já tem tudo planeado. Tiago fez perguntas gentis sobre o seu trabalho de design, sobre como trabalhavaO resto foi história, construída a cada dia como um mosaico de risos partilhados, pequenas vitórias e a certeza de que, afinal, o amor mais verdadeiro é aquele que simplesmente decide ficar.





