O céu de Lisboa naquela manhã parecia pintado com uma melancolia azul-pálida, como se a cidade soubesse que algo na vida de Ricardo Mendonça se havia quebrado para sempre.
Tinham passado apenas três meses desde que o milionário, fundador de uma das empresas tecnológicas mais influentes do país, se mudara para a nova mansão em Cascais com a sua esplêndida esposa, Joana Amaral, depois de um divórcio longo, público e doloroso. A imprensa cobrira tudo: as disputas judiciais, as fotos roubadas, as teorias sobre infidelidades. Quando finalmente se anunciou que Ricardo tinha uma nova esposa, a narrativa mudou: “O magnata encontra o amor novamente.”
Por fora, Joana era perfeita.
Sorriso impecável, roupas elegantes sem ostentação vulgar, presença encantadora em eventos beneficentes, declarações doces sempre que uma câmara se aproximava dela e das crianças: Leonor, de seis anos, sempre com tranças impecáveis, e Tiago, de dois, agarrado ao seu ursinho de pelúcia.
“Eles são a minha prioridade”, dissera Joana numa entrevista em frente à mansão, abraçando Leonor enquanto Tiago escondia o rosto no seu pescoço. “Amo-os como se fossem meus.”
A cidade aplaudiu.
Ricardo quis acreditar.
Precisava acreditar.
Depois de um casamento que se tornara uma guerra fria, a ideia de uma mulher que trouxesse estabilidade à sua vida e calor ao lar era um bálsamo. Joana aparecera num congresso internacional sobre inovação e responsabilidade social, brilhante, articulada, com opiniões firmes sobre educação e família. Ele caiu quase sem perceber.
Mas as fachadas não duram muito quando a porta se fecha.
Foi Leonor quem deixou cair a primeira fenda.
“Pai, vais sair outra vez?”, perguntou-lhe uma noite, com a voz muito baixa, agarrando a ponta do seu casaco.
Ricardo, já com a mala na mão e o motorista à espera para o levar ao aeroporto, agachou-se diante dela.
“Serão só dois dias, minha princesa. Tenho reuniões no Porto. A Joana ficará convosco. Vão ficar bem.”
Leonor hesitou. Os seus grandes olhos castanhos pareciam procurar algo no rosto do pai. Depois, como se tivesse decidido algo, acenou, mas não sorriu. Tiago, nos braços de Joana, chupava o polegar, silencioso.
“Não faças drama, Leonor”, interveio Joana com um tom suave mas afiado. “O teu pai trabalha muito por todos nós. Vai acabar os trabalhos de casa.”
Ricardo ignorou o ligeiro tom cortante na sua voz. Atribuiu-o ao stress. Despediu-se, beijou as crianças, abraçou Joana e saiu.
Os dois dias tornaram-se quatro devido a atrasos, depois seis. Quando voltou, as crianças estavam estranhamente caladas.
Leonor já não saltou para os seus braços como antes. Tiago já não esticou os braços a pedir colo.
Apenas o olharam, sérios.
“Estão bem?”, perguntou ele, tentando soar casual.
“Claro”, respondeu Joana com um sorriso perfeito. “Andam um pouco sensíveis, mas já sabes, estão a adaptar-se.”
Ricardo quis acreditar outra vez.
Até começar a reparar nos detalhes.
Leonor saltava quando alguém levantava a voz na televisão. Tiago escondia comida nos guardanapos.
Uma noite, Ricardo encontrou o filho sentado no chão, com o prato quase intocado.
“Campeão, não tens fome?”
Tiago abanou a cabeça sem olhar para ele.
“A Joana disse que já comi muito”, sussurrou.
Ricardo franziu a testa.
Dirigiu-se à cozinha. Joana organizava os recipientes como se fossem peças de um puzzle perfeito.
“Tiago não quer jantar?”
“Já comeu”, respondeu ela, sem se virar. “Está a aprender a não desperdiçar. Os teus filhos estão mal-educados, Ricardo. A tua ex-mulher mimava-os demasiado.”
A frase picou-o. Apertou a mandíbula, mas não respondeu. Em vez disso, ficou acordado mais do que devia, a ver e-mails, mas com a mente presa na imagem dos olhos apagados dos filhos.
Nos dias seguintes, a sensação cresceu.
Leonor andava com cuidado, como se o chão a pudesse trair. Joana corrigia-lhe cada gesto.
“Não te encolhas.”
“Não fales tão alto.”
“Não toques nisso, vais parti-lo.”
“Não chores por coisas parvas, Leonor, pareces um bebé.”
Tudo dito com um sorriso se Ricardo estivesse por perto. Com veneno quando ele se virava.
Havia outra presença na casa que Ricardo começou a notar mais: Sofia.
A jovem empregada doméstica fora contratada pouco depois da mudança. Devia ter uns vinte e cinco anos, cabelo escuro apanhado num coque simples, olhar caloroso, mãos rápidas. Era eficiente, invisível quando devia, mas os seus olhos suavizavam-se quando olhava para as crianças.
Mais do que uma vez, Ricardo viu-a oferecer discretamente a Tiago um pouco mais de puré quando achava que ninguém reparava. A Leonor, uma bolacha escondida num guardanapo.
“Come devagar, meu amor”, sussurrava. “Não há problema.”
Joana, quando a apanhava, torcia a boca.
“Não queremos crianças obesas, Sofia”, dizia com doçura gelada. “Aqui seguimos dietas equilibradas. Faz só o que te peço.”
Sofia baixava a cabeça, mas algo se endurecia na sua expressão quando Joana se afastava.
Ricardo via.
Ricardo começava, pela primeira vez em muito tempo, a desconfiar do seu próprio julgamento.
Uma noite, ouviu um soluço abafado. Eram quase onze horas. Joana dormia ao seu lado, imóvel, como uma estátua perfeita.
Ricardo levantou-se sem acender a luz. Seguiu o som até ao corredor. Parou à porta de Leonor.
Abriu-a devagar.
Leonor estava sentada na cama, abraçando os joelhos, com o rosto escondido.
“Leonor”, sussurrou ele. “Querida, o que se passa?”
Ela ergueu o olhar, os olhos vermelhos. Viu-o. Hesitou. Olhou para a porta. Olhou para o corredor. Como se temesse que alguém mais estivesse a ouvir.
“Nada”, sussurrou. “Estou bem.”
“Dói-te alguma coisa? Tiveste um pesadelo?”
Ela apertou os lábios com força.
“A Joana… diz que não devo incomodar”, disse finalmente, quase inaudível. “Que… que só as crianças más choram.”
Ricardo sentiu um frio a subir-lhe pelas costas.
“Leonor, tu nunca és má por chorar”, disse, com a voz a quebrar-se um pouco. “Nunca.”
Ela olhou para ele como se não soubesse se devia acreditar.
E isso partiu-o.
Naquela noite, enquanto Joana dormia placidamente, Ricardo ficou sentado no escritório, com as luzes apagadas, a olhar para o jardim através das janelas altas. Na escuridão, o reflexo do seu próprio rosto cansado espreitava-o de volta.
Era um homem que construíra edifícios, comprara empresas, derrubara concorrentes.
Mas não sabia o que se passava na sua própria casa.
Ou não queria ver.
Até ali.
A ideia foi tão absurda que no início lhe arrancou um riso amargo.
Depois começou a tomar forma.
Ricardo tinha recursos, contactos, habilidades. Mas também tinha o peso de ser Ricardo Mendonça: cadaRicardo apertou os filhos contra o peito, sentindo o calor dos pequenos corpos que agora eram o seu único tesouro, e prometeu nunca mais fechar os olhos à verdade.





