Lúcia Mendes voltou à antiga casa da avó em Tomar, dois dias depois do funeral. Os quartos pareciam mais frios do que ela recordava, como se o próprio ar soubesse que o único calor daquela casa se tinha apagado. Caminhou devagar pela sala de estar, os olhos a passearem pelas paredes cobertas de fotografias antigas da família — casamentos, retratos desbotados, festas de aniversário que mal se lembrava.
A avó, Amélia Mendes, apertara-lhe a mão no hospital e sussurrara as últimas palavras:
“Lúcia… verifica atrás das molduras.”
Na altura, Lúcia pensou que fosse o delírio de uma mulher à beira da morte. Mas o olhar firme e urgente de Amélia atormentava-a agora.
Aproximou-se da primeira moldura. As mãos tremeram ligeiramente ao levantar o bordo de madeira do prego. Nada. Apenas um retângulo de tinta mais clara. Verificou a seguinte. Novamente, nada. Mas continuou, impulsionada por algo que não sabia nomear — medo, esperança, ou talvez a necessidade de honrar a única pessoa que sempre a protegera.
Na oitava moldura, os dedos tocaram em algo preso ao verso. Um envelope castanho selado.
Dentro, havia documentos legais bem dobrados. A primeira folha fez-lhe conter a respiração — uma escritura que transferia a propriedade de um terreno de 10 hectares em Tomar para Lúcia Mendes, datada de quando ela tinha catorze anos. Nunca o vira antes.
O coração acelerou quando tirou um envelope azul, também selado. Na frente, a letra da avó dizia:
“Se algo me acontecer, isto é só para a Lúcia.”
Abriu-o.
Dentro, havia um pendrive, uma carta de uma página e uma lista de nomes — incluindo o do pai, Rui Mendes, da madrasta, Célia, e de alguém que não ouvira em quase vinte anos: o senhor Almeida, o professor do segundo ciclo despedido após “um incidente” que a envolvera. Lúcia lembrava-se da fúria do pai, dos gritos, da polícia a chegar — mas fora demasiado nova para entender.
A carta que segurava fez-a afundar no sofá, as pernas fracas.
“Lúcia, o incidente com o senhor Almeida não foi o que te contaram. Tenho provas do que aconteceu realmente. Guarda este pendrive em segurança. E prepara-te — o teu pai fará de tudo para enterrar a verdade.”
Lúcia ficou a olhar para o pendrive enquanto o medo lhe apertava o peito.
Mal estendeu a mão para o portátil, faróis iluminaram a janela — o carro do pai.
E ele aproximava-se da casa.
O coração de Lúcia disparou quando Rui Mendes entrou com a chave que nunca devolvera. Olhou em redor, severo.
“O que fazes aqui sozinha?”, perguntou, esquadrinhando o espaço como se procurasse algo escondido.
Lúcia forçou a respiração a acalmar. “Só a arrumar”, disse. “A avó deixou muitas coisas.”
Os olhos de Rui pousaram no pendrive em cima da mesa antes que ela o escondesse. O maxilar contraiu-se. “Onde arranjaste isso?”
“Estava nos pertences dela”, respondeu, mantendo o tom neutro.
Ele aproximou-se, a voz baixa. “Lúcia… há coisas que é melhor deixar quietas.”
Um nó gelado apertou-lhe o estômago. O aviso da avó de repente parecia terrivelmente literal.
Assim que ele subiu — fingindo ir “ver o sótão” — Lúcia pegou no portátil, enfiou o pendrive no bolso e saiu pela porta das traseiras. Dirigiu-se a um café aberto toda a noite e abriu os ficheiros.
Havia gravações. Datas que reconheceu. Noites em que chorara até adormecer. Vídeos do pai a gritar com ela, mas o mais chocante era um clip da escola — Rui Mendes sozinho no corredor, a esconder uma garrafa de álcool na gaveta do senhor Almeida. Outro ficheiro mostrava-o a ameaçar o professor à saída da escola.
A verdade caiu sobre ela:
O pai incriminara um homem inocente para se proteger.
Mas de quê?
A resposta estava numa pasta com o rótulo: “Para a Lúcia — quando tiver idade.”
Dentro, havia fotografias —
Fotos de Lúcia em criança, com nódoas negras nos braços.
Fotos tiradas em segredo pela avó.
Relatórios médicos que Amélia colecionara.
E um último documento: um depoimento escrito à mão pelo senhor Almeida, explicando que tentara denunciar os maus-tratos, mas Rui ameaçara arruinar-lhe a vida.
As mãos de Lúcia tremiam enquanto tapava a boca.
A avó andara a recolher provas durante anos.
O telemóvel vibrou.
Uma mensagem de um número desconhecido:
“Soube que a Amélia faleceu. Está na hora de conversarmos. — Almeida.”
Lúcia prendeu a respiração. Ele estava vivo. Ainda em Tomar.
Dirigiu-se ao endereço que ele indicara — uma pequena casa perto da fronteira. A porta abriu-se antes de bater. O senhor Almeida estava lá, mais velho, mais sereno, os olhos cheios de compaixão em vez de rancor.
“A tua avó disse-me que um dia virias”, murmurou ele.
Dentro da casa, havia uma caixa. Grande. Cheia de mais documentos — cópias de tudo o que Amélia guardara, além de novos ficheiros que Almeida juntara.
Mas uma imagem fez Lúcia gelar:
Uma foto da mãe, tirada na noite antes de ela “cair das escadas.”
E o homem atrás dela na foto —
era Rui.
Lúcia fitou a imagem, a garganta apertada. A mãe, Leonor Mendes, morrera quando ela tinha nove anos. O pai sempre insistira que fora um acidente — Leonor era “desastrada”, dizia. Escorregara a carregar roupa.
Mas a foto nas mãos trémulas de Lúcia contava outra história.
Leonor estava na cozinha, o medo nos olhos. Atrás dela, a mão de Rui segurava-lhe o braço com tanta força que a pele avermelhara.
Almeida sentou-se ao lado dela. “A tua avó nunca acreditou que a morte da Leonor fosse acidental. Passou anos a investigar. Mas todos os que trabalhavam com o teu pai — polícia, advogados — calaram-na.”
“Porquê?”, sussurrou Lúcia.
“Porque o Rui não era só o teu pai”, disse Almeida. “Tinha ligações. Amigos no Ministério Público. Alguém poderoso ajudou a fazer o incidente desaparecer.”
Lúcia sentiu a sala a girar. “Então ele matou-a?”
Almeida não respondeu diretamente. Em vez disso, entregou-lhe um envelope com a etiqueta “Autópsia — Revisada.”
Dentro, havia uma carta de um médico legista reformado, admitindo que fora pressionado a alterar o relatório na noite em que Leonor morrera.
Lúcia levantou-se abruptamente. “Tenho de ir à polícia.”
Almeida pousou-lhe uma mão firme. “Irás. Mas precisas de alguém que não seja comprometido. A Amélia planeou isto. Ela indicou uma jornalista de confiança.”
Deu-lhe um cartão: Beatriz Navarro, Jornalista de Investigação, Diário de Notícias.
Lúcia contactou Beatriz na manhã seguinte. Em horas, ela chegou à casa de Almeida, registou todos os detalhes, examinou cada ficheiro e tirou cópias de tudo.
“Isto não vai ficar em silêncio”, avisou Beatriz. “Se expusermosNo dia seguinte, as manchetes do país ecoaram a verdade que Amélia guardara por anos: **”HOMEM DE TOMAR ENVOLVIDO EM ESCÂNDALO DE MAUS-TRATOS E MORTE SUSPEITA DA ESPOSA”**, e Lúcia, finalmente livre do peso do segredo, sentiu que a avó sorria do céu.





