O menino moribundo estava sozinho no seu banquinho de limonada até que os motociclistas viram o que realmente estava escrito por baixo do cartaz: “50 cêntimos.”
Miguel, de sete anos, passou três horas sentado atrás da sua mesinha de plástico sem um único cliente. A cabeça careca coberta por um boné amarelo, as mãos finas tremiam enquanto arrumava os copos uma e outra vez. O bairro evitava-o há semanas, desde que se espalhou a notícia de que o seu cancro era terminal.
Eu observava da minha varanda enquanto carros abrandavam, viam-no, e aceleravam de novo. Pais com filhos atravessavam a rua para não passarem pelo banquinho. Uma mãe chegou a tapar os olhos da filha enquanto passavam apressadas, como se o cancro fosse contagioso. Como se olhar para uma criança moribunda lançasse uma maldição.
Miguel não chorava. Apenas ficava ali, com a camisola amarela a balouçar no corpo esquelético, à espera. O seu pote de vidro continuava vazio. O sorriso não vacilava, embora eu visse o lábio inferior a tremer.
Então o rugido começou. Baixo e profundo, como um trovão ao longe. Miguel ergueu a cabeça. Os olhos arregalaram-se. Quatro motociclistas em Harleys desciam a pacata rua suburbana, os coletes de cabedal a brilhar ao sol da tarde.
Os vizinhos começaram a puxar as crianças para dentro. A Dona Margarida até correu para casa, batendo a porta como se estivessem sob ataque. Mas Miguel levantou-se. Pela primeira vez em três horas, ele levantou-se.
O líder do grupo, um homem enorme com uma barba grisalha até ao peito, parou mesmo em frente ao banquinho. Tirou o capacete, e foi então que viu. O pequeno bilhete escrito à mão que Miguel colara por baixo do preço. O verdadeiro motivo pelo qual ali estava.
O rosto do motociclista mudou. Virou-se para os outros, disse algo que não ouvi, e os quatro desligaram as motas.
— Olá, pequeno guerreiro — disse o líder, aproximando-se. — Quanto custa um copo?
A voz de Miguel era quase um sussurro. — Cinquenta cêntimos, senhor. Mas… — apontou para o bilhete.
O motociclista ajoelhou-se para ler. Vi os seus ombros a tremer. Aquele homem intimidante, que devia pesar 150 quilos, chorava ao ler o que quer que Miguel tivesse escrito.
O bilhete dizia: *“Não estou realmente a vender limonada. Estou a vender memórias. A minha mãe precisa de dinheiro para o meu funeral, mas ela não sabe que eu sei. Por favor, ajudem-me a ajudá-la antes de eu morrer. — Miguel, 7 anos.”*
O motociclista levantou-se devagar, tirou a carteira e meteu uma nota de cinquenta euros no pote. — Quero vinte copos, irmãozinho. Mas só bebo um. Os outros são para os meus companheiros.
Os olhos de Miguel encheram-se de lágrimas. — Não tem que—
— Sim, tenho. — A voz do homem era rouca de emoção. — Como te chamas, guerreiro?
— Miguel. Miguel Silva.
— Bem, Miguel Silva, eu sou o Urso. Estes são os meus irmãos—Diesel, Tanque, e Padre. Somos do Clube de Motociclistas Velhos Lobos. Todos veteranos. E reconhecemos um guerreiro quando o vemos.
O rostinho de Miguel iluminou-se. — Foram soldados?
— Fuzileiros — o Urso corrigiu com suavidade. — E tu estás a travar uma batalha mais dura do que qualquer uma que enfrentámos. É preciso muita coragem para fazeres o que estás a fazer.
Foi então que a mãe de Miguel, a Ana, saiu a correr de casa. — Miguel! O que estás a— — Parou ao ver os motociclistas. O medo estampou-se no seu rosto.
— Minha senhora — o Urso tirou os óculos de sol. — O seu filho é especial. Está aqui a tentar cuidar de si, mesmo estando… — não conseguiu terminar. — Mesmo estando doente.
O rosto da Ana desmoronou-se. — Miguel, meu amor, não tens que te preocupar com dinheiro. Isso não é responsabilidade tua.
— Mas mãe — disse Miguel baixinho — ouvi-te a chorar ao telefone. Disseste à avó que não tinhas dinheiro para… para depois. Eu queria ajudar.
Vi a Ana desabar numa cadeira de jardim, soluçando. O Urso ajoelhou-se ao lado dela. — Quanto tempo ele tem?
— Seis semanas — sussurrou. — Talvez menos. Os tumores estão no cérebro agora. Os médicos disseram que não há mais nada a fazer.
O Urso levantou-se e pegou no telemóvel. — Diesel, chama os irmãos. Todos. Diz-lhes que há uma situação. Um pequeno guerreiro precisa de nós.
Em uma hora, quarenta e sete motociclistas enchiam a rua. Cada um chegava ao banquinho, lia o bilhete e metia dinheiro no pote. Alguns davam vinte euros. Outros, cem. Um deles, um homem mais velho com emblemas do Ultramar, colocou quinhentos euros e não conseguiu falar através das lágrimas.
Miguel tentou servir a limonada, mas as mãos tremiam demasiado. O Urso pegou no jarro. — Deixa-me ajudar, irmãozinho. Tu mandas, eu sirvo.
— Porque estão a ser tão bons comigo? — perguntou Miguel.
O Tanque, um motociclista com os braços cobertos de tatuagens militares, ajoelhou-se. — Porque nos lembras por que lutámos, pequeno. Lutámos por miúdos como tu. Miúdos que não deviam enfrentar batalhas tão grandes. Miúdos que merecem mais do que a vida lhes deu.
O Padre, que tinha uma cruz no colete, falou. — E porque cuidar uns dos outros é o que fazemos. Tu estás a cuidar da tua mãe. Nós estamos a cuidar de ti. É assim que funciona.
Os motociclistas ficaram durante três horas. BebOs motociclistas nunca mais esqueceram Miguel, e todos os anos, no dia do seu aniversário, enchem a rua de motas, risos e limonada, bebendo à memória do pequeno guerreiro que ensinou a todos o verdadeiro significado da coragem.





