**Diário Pessoal**
Hoje, parei em frente ao espelho, tentando reconhecer a mulher que um dia fui. Mas em vez da confiança e luminosidade que deveriam acompanhar meus trinta e dois anos, vi apenas uma sombra pálida e exausta. A pele, outrora vibrante, agora parecia sem vida, acinzentada. As olheiras profundas não eram apenas cansaço, mas o peso dos últimos meses. Meus cabelos, que antes brilhavam e fluíam, agora jaziam sem vida, como se também tivessem desistido. Não me reconhecia. E não era apenas pela doença — o câncer de segundo grau — mas por tudo o que veio com ele. Três meses atrás, essas palavras mudaram minha realidade. De um futuro cheio de planos, passei a questionar se haveria futuro.
Mas vamos voltar um pouco. Cinco anos atrás… Ah, como tudo era diferente. Naquela época, acreditava que o mundo estava aos meus pés. Tinha acabado de me formar com louvor em Economia e começava como analista júnior no departamento de marketing da “GlobalCorp”, uma gigante no ramo. Não era apenas um emprego — era minha paixão. Dedicava-me de corpo e alma, trabalhando até altas horas, e os resultados não tardaram. Minha chefe, Dona Isabel, sempre dizia:
“Mariana, você tem um talento incrível para análise. Continue assim, e em pouco tempo poderá liderar não só uma equipe, mas um departamento inteiro.”
Essas palavras me enchiam de orgulho. Estava pronta para qualquer desafio. Meus colegas me chamavam de “a dama de ferro”, e eu sorria, aceitando o título. Vida pessoal? Podia esperar. O foco era a carreira. Achava que tinha tudo sob controle, mas o destino tinha outros planos.
Foi nessa época, entre reuniões e apresentações, que conheci Artur. Foi em um evento corporativo, uma celebração pelo lançamento bem-sucedido de uma campanha publicitária. Eu nem queria ir — estava sobrecarregada — mas minha amiga Joana me arrastou, dizendo que eu precisava de um respiro.
O evento era num dos hotéis mais luxuosos de Lisboa. Música, risadas, cristais e luzes. Enquanto me servia no bufê, esbarrei em um homem alto, de cabelos escuros. Ele derramou sumo de laranja em mim, corou e começou a se desculpar. Sorri, acalmando-o, e começamos a conversar.
Era o Artur, gerente do hotel. Descobrimos que tínhamos muito em comum. Ele contava histórias engraçadas dos hóspedes; eu, dos absurdos do escritório. Rimos, o tempo voou, e, no fim da noite, ele pediu meu número.
No dia seguinte, me convidou para sair. Aceitei, embora normalmente fosse cautelosa. Nosso primeiro encontro foi num café aconchegante no Chiado. Ele era charmoso, atencioso, e, sob o luar, confessou:
“Sabes, normalmente não me apresso, mas contigo quero quebrar todas as minhas regras.”
Nossa relação avançou rápido. Em um mês, já vivíamos juntos. Ele dizia que eu era especial, que nunca conhecera alguém como eu. Eu sentia o mesmo. Era cuidado, atenção, apoio. Com ele, sentia-me completa.
Mas aos poucos, algo mudou. Artur falava cada vez mais da mãe, Dona Amélia. Corria para ela a qualquer hora, fosse por uma dor de cabeça ou solidão. Eu tentava entender:
“Ela só tem a mim, Mariana. É meu dever cuidar dela.”
Não discuti, mas a situação piorou. Seis meses depois, ele propôs casamento na praia, ao pôr do sol. Disse “sim” sem hesitar.
A festa foi íntima, mas bela. Eu brilhava no vestido branco; ele olhava-me com tanto amor que eu quase acreditava no final feliz. Mudámo-nos para o meu apartamento, e eu continuei subindo na carreira. Ele permaneceu no hotel, orgulhoso de mim.
Mas a sombra de Dona Amélia crescia. Ela ligava constantemente, exigindo presentes, dinheiro, atenção. Artur atendia a tudo, mesmo quando faltava para nós. Um dia, eu explodi:
“Ela está a manipular-te! Não vês?”
Ele revidou:
“És egoísta. Não sabes o que é ser um bom filho.”
Nossa relação esfriou. Mergulhei no trabalho; ele, nos caprichos da mãe.
Até que veio o diagnóstico: cancro. O mundo desabou. Artur, no início, acompanhou-me às consultas, mas logo voltou a priorizar a mãe. Eu economizava cada euro para a cirurgia, enquanto ele gastava nosso dinheiro em luxos para ela.
Um dia, cheguei mais cedo e encontrei-o revirando minhas coisas.
“O que procuras?” perguntei, gelada.
“Os meus documentos…”
“Não mintas! Queres o dinheiro da minha cirurgia!”
“Preciso para a minha mãe! Ela está doente!”
“Eu tenho cancro, Artur! Cancro!”
“Para de exagerar! Só pensas em ti!”
Saí. Chorei nas ruas de Lisboa, lembrando do homem que um dia me prometeu amor.
Na manhã seguinte, desmaiei. Acordei no hospital. Meu pai, firme ao meu lado, contou que Artur não estava lá — como sempre.
O médico disse que a cirurgia era urgente. Artur apareceu, mas não por mim:
“Onde está o dinheiro? A minha mãe precisa de uma viagem!”
“Vai-te embora.”
Meu pai expulsou-o. Dias depois, soube que ele morrera — bêbado, escorregara e batera com a cabeça.
Não senti luto. Só alívio.
Recuperei-me. Voltei ao trabalho. Reconectei-me com a vida.
Dona Amélia culpou-me:
“Mataste o meu filho!”
Eu só respondi:
“Foi o destino.”
A dor fortaleceu-me. Ensinei-me a valorizar-me, a ser livre. Hoje, sou mais sábia. Mais forte. E sei que posso enfrentar qualquer coisa. Agradeço à vida — até pelo sofrimento. Porque foi ele que me fez quem sou.