Ele Não Devia Estar Ali—Mas Me Reconheceu na Hora

Hoje prometi a mim mesma que não choraria.
Não hoje. Não depois de tudo o que já aconteceu. Não com a lama agarrada às minhas botas e o cheiro do lugar a revirar-me o estômago. Assinei os papéis há meses – desisti da possobem sob pressão, mas isso é outra história. Era para ser definitivo. Corte limpo. Sem contacto.

Mas lá estava ele. Atrás de um portão enferrujado e de rede partida, mais magro, mais velho… mas ainda era ele.
O Zé.

O mesmo cão que eu tinha criado desde cachorro, que costumava dormir debaixo do banco da minha oficina e saltar para a carrinha como se fosse dele.
O homem do canil não acreditou em mim à primeira. Aposto que um tipo tatuado, de cabeça rapada e com cadastro não grita “amante de animais” para toda a gente. Mas quando me ajoelhei junto à vedação e chamei, baixinho, “Ó Zé… sou eu, miúdo,” ele ergueu as orelhas como fazia quando ouvia o barulho do pacote de queijo.

Depois pressionou a cabeça entre as barras, como se quisesse voltar à minha vida.
Devia ter ido embora. Foi o que todos me disseram para fazer.

Em vez disso, fiquei ali de joelhos, as mãos agarradas à rede, enquanto ele lambia os meus dedos pelos buracos, como se me perdoasse sem saber sequer porquê.
Uma mulher aproximou-se – voluntária, acho – e perguntou se eu estava bem.

Disse-lhe que não. Não, não estava bem. Não desde que o tinha entregue. Não desde que saí.
Ela acenou como se entendesse, mas duvido que soubesse realmente.

Não me deixaram levá-lo naquele dia. Disseram que havia um processo. Formulários. Período de espera. Prova de que tinha um sítio para ele.
Mostrei-lhes uma foto do pequeno quarto que alugava por cima da garagem do mecânico. Nada de especial, mas tinha uma porta, uma cama e tigelas já à espera no canto, por precaução.

Disseram que iam pensar. Pediram-me que voltasse no dia seguinte.
E eu voltei. Todos os dias, durante uma semana.

Levei biscoitos. Falei com os funcionários. Ajudei a passear outros cães só para ficar perto dele sem parecer desesperado.
Mas eu estava desesperado. Ele era o único pedaço da minha vida antiga que não tinha desaparecido ou se tornado amargo.

O homem que eu fui não ia voltar, e talvez fosse melhor assim. Mas o Zé? Ele era algo bom. Algo puro.
E eu não o ia perder outra vez.

No quinto dia, chamaram-me ao gabinete. Disseram que tinham revisto o meu pedido e iam aprovar a adoção – com uma condição.
Queriam que eu frequentasse algumas aulas comunitárias sobre cuidados a animais, para terem a certeza de que eu estava a sério.

Eu teria caminhado sobre brasas se fosse preciso.
E então lá fui.

Sentei-me numa sala pequena com mães solteiras cansadas, adolescentes curiosos e um velho resmungão que murmurava sobre “pessoas modernas e os cães” debaixo do nariz. Aprendemos sobre higiene dentária, treino de trela, respostas a traumas. Tomei notas. Fiz perguntas. Até fiquei depois para ajudar a arrumar as cadeiras.

O tempo todo, só pensei na maneira como o rabo do Zé abanava – devagar, como se ainda não confiasse muito, mas quisesse acreditar que podia ser feliz outra vez.
E eu sentia-me igual.

Quando finalmente saí do canil com ele ao meu lado, a trela na mão e os papéis de adoção no bolso, senti como se tivesse ganho o euromilhões.
Ele sentou-se no banco do passageiro como se nunca tivesse passado tempo. Cabeça de fora, língua ao vento, como nos velhos tempos.

O homem da mercearia da esquina até o reconheceu quando paramos para comprar snacks.
“Eh, é o Zé, não é? Pensei que tivesse desaparecido.”

“Pois,” respondi, tentando não embargar a voz. “Ele voltou.”
Mas voltar não significou que fosse fácil.

As primeiras noites foram duras. Ele tinha pesadelos, daqueles que o faziam ladrar e estremecer no sono. Eu sentava-me no chão ao lado da cama dele, a acariciá-lo até se acalmar.
Eu tive os meus também. Monstros diferentes, noites sem dormir iguais.

Mas estávamos a melhorar – juntos.
Numa tarde, levei-o ao jardim perto da escola secundária antiga. Estava vazio, exceto por uma rapariga com um beagle e uma mãe com uma criança a correr atrás dos pombos.

Soltei a trela por um minuto. Ele cheirou uma árvore e depois fez algo inesperado – foi ter com a criança e deixou-lhe a bola aos pés.
Ela gritou de alegria, bateu palmas e atirou-a a uns metros. Ele fingiu que foi o lançamento do século.

A mãe aproximou-se, sorridente. “Ele é meigo. Foi adotado?”
“De certo modo,” respondi. “Mais como… uma reunião.”

Ela riu-se e começámos a conversar. Chamava-se Leonor. Divorciada. Professora. Adorava animais, mas não podia alimentar mais uma boca na altura.
Acabámos por passear os cães juntos algumas vezes. Depois café. Depois jantar.

Por uns tempos, senti que talvez a vida estivesse a melhorar.
Até que veio a reviravolta.

Uma noite, três meses depois de o Zé ter voltado, cheguei a casa e encontrei a janela do quarto partida.
A TV tinha desaparecido. O portátil também. Algumas ferramentas. Nada grave – mas a porta do pequeno armário onde o Zé dormia estava aberta.

E ele não estava lá.
Corri pelo bairro a gritar o nome dele como um louco.

Os vizinhos disseram que viram um SUV prateado, sem matrícula, a arrancar em velocidade.
Fiz queixa, espalhei cartazes, liguei para todas as clínicas e canis da cidade.

A Leonor ajudou-me a imprimir folhetos e até pediu aos alunos para os distribuir.
Os dias viraram semanas.

Nada.
Voltei a ter problemas para dormir. Não me barbeava. Mal comia.

Até que, numa tarde chuvosa, recebi uma chamada duma clínica veterinária noutra cidade.
“Detetámos um microchip,” disseram. “É o seu cão. O Zé, não é?”

Quase deixei cair o telemóvel.
Tinham-no encontrado num valeta perto de uma bomba de gasolina. Magro, a coxear, encharcado – mas vivo.

O veterinário disse que provavelmente escapou sozinho. Talvez saltou do carro ou foi largado quando os ladrões perceberam que não valia nada.
Conduzi como um louco para ir buscá-lo.

Quando entrei na clínica, ele ladrou – uma vez – e veio ter comigo, a coxear, o rabo a abanar devagar, mas firme.
Ajoelhei-me e abracei-o como se nunca mais o fosse largar.

Desta vez, cumpri a promessa.
A partir daí, coloquei mais fechaduras. Câmaras. Garanti que ele nunca mais dormisse sozinho.

A Leonor mudou-se para minha casa meses depois.
Construímos um pequeno quintal para o Zé, apesar das queixas do senhorio. Paguei tudo do meu bolso e prometi desmontá-lo se saíssemos.

Mas não quero sair.
Aquele cantinho, pequeno e rangente, tornou-se uma casa.

Para os três.
Engraçado como as coisas acontecem.E agora, sempre que vejo o Zé a correr pelo quintal e a Leonor a sorrir à mesa da cozinha, lembro-me que às vezes, mesmo depois da tempestade, o sol acaba por brilhar.

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