Após doze anos de serviço militar — atravessando desertos, selvas e postos remotos — o Sargento António Ribeiro voltou para casa e encontrou silêncio.
Nenhuma parada. Nenhuma celebração. Apenas um portão rangendo e o eco das suas botas no alpendre da antiga casa dos pais, numa aldeia perdida nos campos do Alentejo.
Ele gostava da quietude.
Precisava dela.
A guerra levara mais do que o seu ombro esquerdo e metade do seu sono — levara os seus companheiros. Amigos que nunca tiveram uma segunda chance. Irmãos de armas reduzidos a bandeiras dobradas. António regressara com um coração assombrado e uma claudicação que se recusava a mencionar.
Acreditava que a cura viria devagar.
Mas então… os presentes começaram.
Primeiro, foi uma caixinha de bolinhos de mel ainda quentes, deixada na sua porta numa manhã qualquer.
Sem bilhete. Sem nome.
Apenas doçura e silêncio.
Uma semana depois: margaridas frescas num jarro de vidro.
Depois, uma carta escrita à mão num papel florido.
“Tu és visto. Tu és lembrado. E és mais do que as tuas cicatrizes.”
António leu-a duas vezes.
Depois dobrou-a e guardou-a na gaveta da cozinha, sem saber o que fazer com o calor repentino que lhe inundava o peito.
De dias a dias, um novo recado ou prenda aparecia. Bolo de banana. Um cachecol. Um pequeno Evangelho com versículos sublinhados a tinta cor-de-rosa.
Cada mensagem era diferente.
Mas sempre reconfortante.
Sempre gentil.
Sempre anónima.
Perguntou pela aldeia.
A empregada do café encolheu os ombros. “Não fui eu, querido.”
A florista sorriu. “Fazemos entregas, mas não para ti. Deve ser alguém daqui.”
Até o carteiro franziu a testa. “Não foi pelos CTT, amigo.”
Naquela noite, a curiosidade pôde mais que ele.
Colocou uma cadeira junto à janela, baixou as luzes e esperou.
Por volta da meia-noite, já cochilava.
Mas às duas e dezassete da madrugada, um vulto mexeu-se no alpendre.
António abriu os olhos a tempo de ver uma figura pequena, encapuzada e delicada, subir os degraus, deixar um embrulho de pano e afastar-se.
Levantou-se de um salto, correu para a porta — lento, mas firme.
Quando a abriu…
A figura virou-se o suficiente para a luz da lua lhe revelar o rosto.
E algo dentro dele despedaçou-se.
Era Catarina Sousa.
A sua noiva.
Pelo menos, tinha sido — antes daquela última missão.
Antes da explosão, do coma.
Ele acordara três meses depois, confuso num hospital, e disseram-lhe que Catarina partira, incapaz de lidar, inalcançável.
Assumira que ela seguira em frente. Que o tinha chorado e deixado ir.
Mas ali, diante dele, com lágrimas a brilhar nos olhos, ela sussurrou: “Não sabia como voltar. Não sabia se me querias de volta.”
António não conseguia falar.
Não conseguia respirar.
Desceu os degraus e estendeu a mão — não como um soldado, mas como um homem finalmente a sair do nevoeiro.
Ela segurava o último presente — uma foto dos dois, anos atrás, sentados debaixo do salgueiro à beira do rio, a cabeça dela no seu ombro.
“Nunca deixei de te amar,” disse. “Só não sabia como enfrentar a versão de ti que regressou.”
Ele caiu de joelhos à sua frente — não de dor, não da ferida, mas do peso de tudo que carregara sozinho… agora aliviado.
Lágrimas silenciosas escorreram-lhe pelo rosto.
Catarina ajoelhou-se ao seu lado.
E, pela primeira vez em anos, ele permitiu-se ser abraçado.
Naquela noite, sentaram-se lado a lado no alpendre enquanto o amanhecer nascia, duas chávenas de café fumegando entre eles, o último recado nas mãos de António:
“Até as coisas partidas podem tornar-se belas novamente. Esperei até estares pronto.”
E, no fundo dele, onde antes havia tiros e fantasmas, algo desabrochou.