Nunca imaginei que acabaria num tribunal, a olhar para o homem que um dia amei enquanto ele ria na minha cara enquanto assinava os papéis do divórcio. Mas era ali que estava. E, ao observar o sorriso dele, percebi o quanto eu tinha mudado — e o pouco que ele realmente me conhecia.
Tiago e eu estivemos casados durante sete anos. Conhecemo-nos na universidade — ele era encantador, ambicioso e tinha um jeito de fazer todos se sentirem importantes. Eu apaixonei-me perdidamente. Talvez demais.
No início, tudo era perfeito. Viajámos juntos, começámos um negócio e construímos uma vida que, por fora, parecia um sonho. Mas, por baixo da superfície, as fissuras apareciam. O charme de Tiago transformou-se em manipulação. A sua ambição? Tornou-se ganância. E o amor que um dia encheu a nossa casa? Desapareceu, substituído por silêncios frios e controlo calculado.
Desisti de muita coisa por Tiago. Da minha carreira, da minha independência e, muitas vezes, da minha voz. Ele sempre fazia parecer que me fazia um favor. “Não precisas de trabalhar”, dizia. “Eu trato de tudo. Apenas cuida da casa.”
E foi o que fiz. Mantive a casa impecável, organizei jantares para os seus clientes, sorri quando queria gritar e apoiei-o — mesmo quando ele deixou de me apoiar. Começou a viajar mais, a chegar tarde, a sussurrar ao telefone. Sabia que algo estava errado. Mas, sempre que perguntava, diziam que eu estava “a exagerar” ou “a ser dramática”.
Até que a verdade veio ao de cima. Ele tinha um caso. Com a sua assistente. Vinte e quatro anos, mal saída da faculdade — tal como eu quando o conheci.
Quando o confrontei, ele não negou. Na verdade, parecia aliviado.
“Não está a resultar”, disse, sem emoção. “Ambos sabemos disso.”
Devia ter chorado, implorado para ele ficar. Mas não o fiz. Apenas olhei para ele e murmurei: “Tens razão.”
E ficou assim. Ele pediu o divórcio duas semanas depois. Tentou fazer parecer que foi mútuo. Mas todos sabiam que não era. Mudou-se para um apartamento em Lisboa com ela, enquanto eu fiquei na casa — na verdade, a casa do meu pai. Era a única coisa que eu tinha antes de conhecer Tiago. A única coisa que me recusei a ceder quando casámos.
E ali estávamos nós. No tribunal. Ele com um fato caro e o advogado a sorrir, eu com um vestido azul-marinho e os nervos sob controle. Ele estava confiante. Demasiado.
Quando o juiz pediu que revisássemos os termos finais do divórcio, Tiago pegou na caneta, sorriu e inclinou-se para mim.
“Parece que acabou a tua vida de mordomias”, sussurrou, só para eu ouvir. “Devias ter-me feito feliz enquanto podias.”
Não respondi. Não precisava. Porque havia algo que ele não sabia — algo que nem eu sabia até dois dias antes.
O meu pai, que faleceu há oito meses, deixara uma carta lacrada e um testamento suplementar. O advogado ligou-me na segunda-feira. Disse-me que o meu pai esperou que o processo de divórcio começasse para revelar o conteúdo.
“O seu pai queria protegê-la”, explicou o advogado. “Tinha receio que Tiago tentasse aproveitar-se da herança. Por isso esperou.”
O funcionário do tribunal entregou os documentos ao juiz. Era só uma última assinatura para finalizar o divórcio. Tiago quase assobiava de satisfação.
Mas, quando o juiz estava prestes a assinar a sentença, um funcionário entrou na sala e entregou-lhe uma pasta lacrada. O juiz parou, leu o conteúdo e olhou diretamente para Tiago. O sorriso dele desapareceu. Algo estava a acontecer — algo inesperado.
“Sr. Mendes”, disse o juiz, devagar. “Parece que foram entregues novos documentos ao tribunal — relacionados com os bens da sua futura ex-mulher. Vamos fazer uma pequena pausa.”
Tiago virou-se para mim, com os olhos apertados. “O que é isto?”
Não disse nada. Apenas sorri.
Porque tudo estava prestes a mudar.
Tiago parecia um homem que tinha perdido o controle da situação — e tinha. Desta vez, não eram ele a mandar. O juiz levantou-se, levou os documentos para o gabinete e pediu-nos para esperarmos. O advogado de Tiago cochichava com ele, mas ele não parava de me olhar, tentando perceber.
Eu mantive-me calma. Não fizera nada. O meu pai, sim.
Quinze minutos depois, o juiz regressou.
“Eu analisei os documentos apresentados em nome do falecido Sr. Henrique Almeida — pai da Sra. Mendes. Aqui está uma alteração póstuma e legalmente válida ao testamento original, juntamente com declarações notariais que confirmam o seu conteúdo.”
Tiago inclinou-se para a frente, irritado. “Meritíssimo, com todo o respeito, como é que isto interessa?”
O juiz não pestanejou. “Porque, Sr. Mendes, os bens em questão afetam a divisão de propriedade e pensão de alimentos. E revelam algo que desconhecia.”
O juiz prosseguiu. “O Sr. Almeida deixou uma herança substancial — estimada em 17 milhões de euros.”
Podia ouvir-se um alfinete cair. Tiago ficou boquiaberto. O advogado dele pestanejou, incrédulo.
O juiz continuou: “No entanto, não é uma simples herança. O Sr. Almeida criou um fideicomisso para proteger a filha contra exploração financeira em caso de divórcio. Este só seria revelado se o casamento terminasse em circunstâncias que ele descreveu como ‘injustas e infiéis’.”
Tiago ficou vermelho de raiva.
“O fideicomisso inclui propriedades, negócios e ações, todos registados no nome de solteira da Sra. Mendes. Além disso, o Sr. Almeida deixou uma carta a explicar que suspeitava há muito da infidelidade do Sr. Mendes e alertou a filha para se proteger. Os bens são irrevogáveis, e o Sr. Mendes está legalmente impedido de os contestar ou usufruir deles.”
O juiz fechou a pasta. “Portanto, Sr. Mendes, embora parecesse que sairia beneficiado deste divórcio, a sua ex-mulher é, na verdade, a única beneficiária de uma fortuna — e o senhor não receberá nada além do que já foi acordado no acordo pré-nupcial que um dia gozou.”
Tiago levantou-se, furioso. “Isto é ridículo! Ela enganou-me! Ela—”
“Sente-se”, ordenou o juiz. “Este tribunal não tolera desacatos.”
Não disse uma palavra. Não precisava. Durante sete anos, vivi à sua sombra, sempre a duvidar de mim mesma, a ceder para manter a paz, a diminuir-me para ele brilhar. Mas não mais.
Tiago sentou-se, atordoado, enquanto o advogado rabiscava notas e evitava olhar para ele.
Após uma breve pausa, o juiz finalizou o divórcio.
“Sra. Almeida”, disse, dirigindo-se a mim pelo meu nome de solteira, “está livre deste casamento. Os bens destinados a si estão protegidos pelo fideicomisso, e o divórcio está finalizado.”
Acertei com a cabeça, segurando as lágrimas — não de tristeza, mas de alívio.
Ao sairmos da sala, Tiago tentou uma última vez.
“Tu sabias”, cuspiu. “Estiveste a jogar comigo todo este tempo.”
Virei-me calmamente. “Não, Tiago. Apenas deixei de te deixar jogar comigo.”
Ele abriu a boca, mas não saiu nenhuma palavra. Pela primeira vezE enquanto caminhava pela rua, sentindo o sol de Lisboa a aquecer o meu rosto, soube que a vida, finalmente, era só minha.