Num dia de outono, uma chamada de emergência chegou à base do INEM: “Criança de cinco anos, febre alta, inconsciência, possível paragem cardíaca.” A equipa foi enviada para um bairro de luxo em Cascais — não era o local mais comum para uma ambulância. Normalmente, essas famílias preferiam médicos privados ou clínicas próprias.
Os médicos Leonor e Duarte chegaram ao local. Quando a ambulância parou em frente à mansão, os dois trocaram olhares de desconfiança — pacientes assim raramente recorriam ao serviço público.
Mas assim que a porta se abriu, Leonor ficou imóvel. À sua frente estava o seu ex-marido — João Guilherme Almeida. O tempo o envelhecera um pouco, o rosto mais marcado, o olhar nervoso.
— Meu Deus, Leonor Margarida! Por favor, salve o meu filho! — quase gritou ele. — Eu pedi especificamente por si. Sei que é uma verdadeira profissional. O Martim está inconsciente há mais de dez minutos!
— Fez reanimação? — perguntou Leonor rapidamente.
— Sim, começámos. Mas eu vim abrir a porta, e a minha esposa continuou com o massagem cardíaco.
— Então vamos rápido até à criança! — ordenou ela, entrando primeiro.
Leonor sempre fora confiante por natureza. Não por ingenuidade, mas por acreditar no melhor das pessoas. Foi essa qualidade que a levou a João, anos atrás. Todos avisavam: “Ele é um conquistador, calculista e egoísta.” Mas ela insistia: “O meu João é diferente.”
Conheceram-se há muito tempo, no mesmo INEM onde ela começara como médica recém-formada, e ele era chefe de equipa. Ela tinha vinte e poucos anos — esguia, com cabelo loiro e olhos verdes gentis. Mesmo no jaleco, parecia frágil, quase uma miúda.
João também causava impressão. Cirurgião de formação, já salvara centenas de vidas. Ombros largos, barba bem-feita — tudo nele transmitia força. Adorava andar de mota preta depois do turno para aliviar o stress. O cabelo curto, com uns fios grisalhos nas têmporas, dava-lhe um toque sério, e o olhar — intenso, penetrante — parecia ver tudo.
Quando Leonor começou a trabalhar, todos esperavam outro caso passageiro. João tinha fama de conquistador, conhecido por trocar de namorada como quem troca de camisa. Mas com ela, era diferente — suave, contido, protector. Isso até conquistou os colegas mais céticos.
O romance avançou rápido. Depois de um ano de passeios de mota, casaram. Todos se surpreenderam — quem diria que um solteirão como ele se fixaria?
A vida não era fácil. Os salários de médicos eram baixos, a burocracia enorme, a carga esgotante. Muitos desistiam, mas eles permaneceram. Escolheram a medicina por vocação, não pelo dinheiro.
A mãe de João, Beatriz Isabel, entendia bem a luta. Trabalhara a vida toda num hospital, sobreviveu aos anos difíceis, criou-o sozinha. O pai, Guilherme, desaparecera misteriosamente nos anos 80. Ela teve de ser mãe e pai ao mesmo tempo.
Beatriz adorou Leonor. Uma rapariga do interior, que viera para a cidade sem influências, mas com trabalho duro. Era humilde, dedicada, de cabeça fria. Para Leonor, a sogra tornou-se a mãe que perdera cedo. Havia uma ligação sincera entre elas.
Foi Beatriz quem sugeriu abrir uma clínica privada. João hesitou — achava arriscado para a idade dela. Mas Leonor apoiou a ideia. Beatriz fez o trabalho pesado: encontrou espaço, tratou de documentos, contratou pessoal. João ajudou financeiramente, mas a força motriz era a mãe.
Nos primeiros anos, a clínica cresceu devagar mas certo. Beatriz mostrou-se uma mente organizadora brilhante. Parecia ter nascido para liderar, embora nunca tivesse tido negócios antes.
Leonor também se especializou — dermatologia e estética. Estudava à noite, mesmo depois de turnos exaustivos. O esforço valeu a pena: o nome dela tornou-se sinónimo de excelência.
Mas o preço foi alto. O casal nunca teve filhos. João encarava com leveza, mas Leonor angustiava-se.
Cinco anos depois, a clínica prosperava. Leonor focava-se nos pacientes, João na gestão. Ele sabia tudo do negócio, embora os documentos fossem em nome da mãe. Mas era claro: o controle era dele.
O primeiro golpe veio inesperado. Uma mensagem anónima nas redes sociais: “O seu marido trai-a.” Leonor riu-se — confiMas quando Beatriz morreu subitamente durante um jantar em família, aquela mensagem voltou à sua mente com uma dor aguda, e foi só o primeiro de muitos segredos que viriam à tona.