No coração da Beira Alta, onde os castanheiros sussurram segredos e os rios bordam rendas de prata, escondia-se a aldeia de Montemuro. As suas ruas, como ossos velhos, secaram sob o sol do tempo. Os jovens haviam partido para as cidades, como água por fendas, deixando apenas viúvas idosas – aquelas cujos corações batiam ao ritmo do sino da capela abandonada. Todas passavam dos setenta, alguns dos oitenta, mas os seus olhos, como brasas na cinza, ainda guardavam fagulhas de vida. Raramente, no calor de agosto, chegavam os netos – corados, barulhentos, com malas cheias de agitação urbana.
Entre eles estava Leonor, uma menina com cabelo cor de trigo maduro e olhos que refletiam a profundidade das lagoas serranas. Os pais, médicos de Lisboa, mandavam-na todos os verões para a avó Amélia Fernandes, certos de que o ar de Montemuro, embebido em alecrim e aleluia, fortaleceria a neta como um carvalho. A casa de Amélia ficava na orla da aldeia, onde os campos se encontravam com o pinhal. Na quinta, só havia a vaca Mariana, galinhas de cristas coloridas e a velha gata Negrita, cujas cicatrizes no focinho contavam histórias de batalhas com raposas.
Mas numa manhã, quando o orvalho ainda brilhava, Negrita trouxe do bosque um embrulho tremeluzente entre os dentes. Amélia, limpando as mãos no avental, exclamou: “Meu Deus, é um rato!” Porém Leonor, ajoelhando-se, viu patinhas rosadas sob a pelagem escura e olhos ainda fechados, como duas pérolas. “Avó, não é um rato! É… um lobito!” Era verdade: pequeno, quase sem vida, agarrava-se às mãos da menina como um gatinho. Negrita, arqueando o lombo, ronronava como se o tivesse parido. Descobriram que ela o encontrara no bosque – talvez abandonado pela mãe ou levado pela tempestade. Às vezes os gatos confundem lobitos com crias suas, oferecendo-lhes maternidade sem saber que criam um predador.
“Vamos ficar com ele, avó!” suplicou Leonor, apertando o animalzinho ao peito. “Eu alimento-o, levo-o a passear… Ele não faz mal a ninguém, juro!” Amélia suspirou, vendo as faces coradas da neta. Como negar algo a quem vê o mundo como presente?
Assim chegou Raio – nome inventado por Leonor ao ouvir o vento cantar nos pinheiros. Ela alimentava-o com biberão, enrolava-o num xaile, e Negrita ensinava-o a saltar para o muro e lavar o focinho com a pata. Raio cresceu imitando a gata: dormia enrolado, ronronava quando acariciado e até caçava borboletas como um felino. Mas a cada dia, sua natureza lobuna despertava – o pelo engrossava, o olhar afiava-se, os passos silenciavam.
Quando Leonor fez dezasseis anos, já não vivia sem Montemuro. Os pais não deixavam levar Raio para o apartamento lisboeta, mas ela visitava a avó mensalmente. O lobo, agora um animal alto e imponente de pelagem prateada, esperava-a no portão como se soubesse o horário do autocarro. Não ladrava nem rosnava – apenas repousava a cabeça no seu colo enquanto ela falava da escola, dos sonhos, de como a cidade a esmagava como tampa de ferro.
Numa noite de agosto, quando o sol derretia o horizonte em ouro, Leonor voltava da vila. O autocarro, um velho Renault, engasgou-se na estrada escura. “Avariou”, resmungou o motorista. “Até Montemuro são cinco quilómetros a pé.” A rapariga não temeu – conhecia o bosque como a palma da mão. Mas quando as luzes da aldeia bruxulearam ao longe, um rugir de motor ecoou atrás dela. Um jipe preto surgiu como sombra, dele saindo um rapaz de camisa amarrotada, com cheiro a álcool. Seus olhos estreitos e maus deslizaram sobre Leonor como lâmina. “Entra, levo-te”, raspou ele. “Não, obrigada”, recuou ela, mas sua mão já lhe apertava o pulso. Empurrou-a para o carro, prendendo-a: “Gritas e levas.” Quando o jipe virou para um carreiro, Leonor gritou. Fugiu, correu até os ramhos lhe arranharem o rosto. Ele alcançou-a… E quando seus dedos tocaram seu pescoço, da escuridão surgiu um furacão prateado.
Raio.
Arremessou-se contra o homem como trovão. Presas cravadas no braço, atirou-o contra uma árvore. O rapaz urrou, tentando proteger-se, mas o lobo rasgava-lhe a roupa, arranhava-lhe a pele, buscando a garganta. No último instante, o homem escapou para o carro, batendo a porta, e o jipe sumiu-se na noite.
Leonor tremia, abraçando o pescoço de Raio. Seu pelo cheirava a resina e calor, o coração batia tão forte que abafava os pios das corujas. “Salvaste-me…” sussurrou, enterrando os dedos na sua juba. O lobo lambeu-lhe as lágrimas – salgadas como mar.
De manhã, Amélia ouviu a história e benzeu-os três vezes. “Ele não é lobo”, disse a velha, observando o animal que não saía de Leonor. “É um anjo de pele.”
Desde então, em Montemuro murmuravam: se ouvisses um lobo de crina prateada uivar na serra, fugias. Mas se ele calasse e guardasse uma casa, sabias: ali vivia uma alma que nem a sombra ousaria tocar. Leonor, tornando-se professora, levava livros e crianças à aldeia, para que soubessem – ainda há lugares onde o bem vence o medo.
E todas as noites, quando o sol se afogava nos bosques, Raio deitava-se à porta, protegendo o sono da rapariga que um dia lhe chamara “lar”.