A chuva fria já havia encharcado o casaco de Beatriz Martins quando o seu marido, Bernardo, bateu com a porta do carro e partiu. As palavras dele ainda ecoavam: “Sem mim, não és nada.”
Ela ficou parada no abrigo de autocarro vazio, a máscara de cílios a escorrer, o coração aos pulpos. O telemóvel e a carteira tinham ficado no carro, quando ele saiu em fúria depois de mais uma discussão sobre a sua “falta de ambição”.
Uma voz frágil quebrou o silêncio. “Menina, pareces um fantasma esquecido na chuva.”
Beatriz virou-se. Uma senhora idosa, com uma bengala branca dobrada ao seu lado, estava sentada calmamente debaixo do toldo. Um lenço de seda emoldurava o seu rosto pálido, os olhos cegos escondidos por óculos escuros.
“Estou bem,” murmurou Beatriz, abraçando-se.
“Não estás,” respondeu a senhora com suavidade. “Finge que és a minha neta. O meu motorista chega a qualquer momento.”
Antes que Beatriz pudesse perguntar porquê, um BMW preto e lustroso estacionou ao lado. Um homem de fato saiu, segurando um guarda-chuva.
“Aí está, Dona Guilhermina,” disse ele. “E esta deve ser—?”
“A minha neta,” interrompeu a senhora com naturalidade. “Beatriz.”
Beatriz congelou, surpreendida. O homem sorriu educadamente e abriu a porta. A senhora idosa pegou na sua mão com firmeza inesperada.
“Vem, querida,” sussurrou. “O teu marido vai arrepender-se de te deixar com a mulher mais rica da cidade.”
Beatriz achou que fosse uma piada estranha—talvez uma excentricidade de velhice—mas obedeceu.
Dentro do carro aquecido, Dona Guilhermina ordenou ao motorista que as levasse para a sua casa nas colinas de Sintra, com vista sobre o Tejo.
Quando chegaram, Beatriz já sabia que a senhora se chamava Guilhermina Sousa, viúva de um magnata bancário, conhecida na cidade pelas suas fundações de caridade.
Guilhermina dispensou a equipa com um gesto. “Podes ficar esta noite,” disse simplesmente. “Falamos de manhã.”
Beatriz olhou em volta para os pisos de mármore e os retratos a óleo. “Dona Guilhermina, eu não posso—”
“Podes,” interrompeu a senhora. “E vais. Ninguém deixa a família na chuva.”
Naquela noite, enquanto repousava num quarto de hóspedes com lençóis de seda, Beatriz percebeu que Guilhermina não estava a brincar.
A luz da manhã entrava pelas janelas altas. Beatriz acordou com um pequeno-almoço servido numa bandeja e um bilhete escrito à mão: “Encontra-me no jardim às nove. —G.S.”
Guilhermina já estava sentada entre sebes podadas quando Beatriz chegou. Apontou para o banco ao seu lado.
“Lembras-te da minha neta,” começou Guilhermina. “Ela partiu cedo—demasiado coração, pouca proteção.”
Beatriz sentou-se em silêncio, sem saber como responder.
Guilhermina virou o rosto para o sol. “Diz-me, o que planeias fazer agora?”
Beatriz hesitou. “Não sei. O Bernardo levou tudo. Não tenho para onde ir.”
A senhora acenou lentamente. “Então começa aqui. Trabalha para mim.”
Beatriz pestanejou. “Trabalhar para si? A fazer o quê?”
“A aprender,” respondeu Guilhermina. “Não contrato empregadas. Oriento sobreviventes.”
Nas semanas seguintes, Beatriz tornou-se assistente de Guilhermina—lia para ela, gerenciava chamadas, lidava com doações. O trabalho era exigente, mas Guilhermina era paciente, perspicaz e discretamente implacável nos negócios. Ensinou a Beatriz sobre negociação, investimento e respeito próprio.
“As pessoas vão subestimar-te,” disse Guilhermina certa tarde. “Deixa-as. Depois faz com que se arrependam.”
O advogado de Guilhermina, Duarte Lemos, começou a notar a aptidão de Beatriz. “Tens cabeça para finanças,” comentou. “A Guilhermina está a preparar-te para algo.”
Beatriz riu-se, mas ele não estava errado. Guilhermina tratava-a não como uma empregada, mas como uma herdeira em treino.
Três meses depois, Bernardo apareceu na mansão de Guilhermina, barbeado e com um sorriso nervoso.
“Beatriz! Finalmente encontro-te.”
Guilhermina estava sentada no terraço quando ele chegou. “Ah, o marido que deixa a mulher na chuva,” disse com tranquilidade. “Que poético.”
O sorriso de Bernardo desvaneceu-se. “Olha, cometi um erro. Só quero falar com a minha mulher.”
Guilhermina inclinou a cabeça. “Queres dizer a minha assistente. Ela está ocupada.”
Beatriz saiu, calma e serena. “O que queres, Bernardo?”
“Recomeçar,” suplicou. “Eu mudei.”
Ela encarou-o—firme, impenetrável. “Eu também.”
Quando ele estendeu a mão, o motorista de Guilhermina interveio. “Chega, senhor.”
A expressão de Bernardo endureceu. “Achas-te superior a mim agora?”
“Não,” respondeu Beatriz suavemente. “Mas finalmente sei o meu valor.”
Guilhermina sorriu quando ele saiu em fúria. “Disse-te que ele se arrependeria,” murmurou.
Um ano depois, Beatriz estava ao lado da cama de hospital de Guilhermina. A saúde da senhora piorara rapidamente, mas a sua mente permanecia afiada.
“Deste-me mais paz do que alguma vez esperei,” sussurrou Guilhermina. “Quero que continues o que eu comecei.”
“Não fale assim,” disse Beatriz, lutando contra as lágrimas.
Mas Guilhermina apenas sorriu. “Promete-me que nunca deixarás que a pena dite o teu caminho.”
Quando Guilhermina faleceu naquela noite, Beatriz sentiu que perdera a sua verdadeira família.
Dias depois, Duarte Lemos chamou-a ao seu escritório. Sobre a mesa estava um envelope grosso com a letra de Guilhermina.
“A Dona Guilhermina alterou o testamento no mês passado,” disse. “Deves ver isto.”
Dentro, Beatriz encontrou uma carta: “À Beatriz Martins—Entraste na minha vida como uma estranha e tornaste-te a neta que sempre desejei. Deixo-te a Fundação Sousa e os recursos para a reconstruíres à tua imagem. Usa-os com sabedoria. Muda vidas como a tua foi mudada. —Guilhermina Sousa.”
Beatriz ficou atordoada. “Isto não pode estar certo.”
Duarte acenou. “É totalmente legal. Agora és a administradora.”
Os meios de comunicação entraram em frenesim quando se soube que Guilhermina Sousa deixara a sua fortuna de milhões à uma jovem sem laços familiares. Jornalistas acamparam à porta. Velhos conhecidos ligaram, fingindo querer “reatar”. Até Bernardo reapareceu, desta vez com um advogado.
Tentou alegar manipulação emocional, exigindo parte da herança. O caso tornou-se público, mas os registos meticulosos de Guilhermina—e a lealdade de Duarte—destruíram as alegações dele.
No tribunal, Beatriz enfrentou-o pela última vez.
“Bernardo,” disse, com voz firme, “deixaste-me num passeio porque me julgaste fraca. Agora estás aqui porque já não sou.”
Ele não respondeu.
Quando o juiz arquivou o caso, Beatriz saiu em liberdade.
Sob a sua direção, a Fundação Sousa expandiu-se para programas de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica, oferecendo educação, habitação e formação profissional. Ela insistia numa regra: cada candidata teria de ajudar outra mulherE, anos mais tarde, enquanto inaugurava um novo centro de acolhimento, Beatriz olhou para a placa na entrada—com o nome de Guilhermina gravado a ouro—e sorriu, sabendo que a chuva daquele dia frio a levara, afinal, ao lugar onde sempre deveria ter estado.





