Durante cinco longos anos, passei mais tempo ao lado da cama de hospital da minha esposa do que na minha própria. Alimentei-a com uma colher, mudei-lhe as ligaduras, limpei cada gota de suor do seu corpo. As pessoas chamavam-me tolo, mas eu acreditava no vínculo sagrado do matrimónio. Até que uma tarde — esqueci-me da carteira em casa e voltei mais cedo do que o habitual. No momento em que abri a porta do nosso quarto… congelei. O mundo que protegera durante anos desmoronou-se num único batimento cardíaco.
Estêvão, um homem de trinta e poucos anos, tinha um porte magro mas forte e um rosto que parecia mais velho do que a sua idade.
Vivia com a sua esposa, Leonor, em uma casa modesta, térrea, nos arredores de Coimbra.
Ambos professores do ensino primário, levavam uma vida calma e simples — não eram ricos, mas estavam satisfeitos.
A sua história de amor era algo que muitos à sua volta admiravam.
Até que a tragédia chegou numa tarde de inverno.
Leonor sofreu um acidente de carro quando saía do mercado, onde comprava provisões para o Dia de Todos os Santos.
Uma lesão na coluna deixou-a paralisada da cintura para baixo.
Estêvão estava a dar aula quando recebeu a chamada do hospital.
Correu sem pensar, e quando a viu, o seu coração partiu-se: a sua esposa alegre e cheia de vida jazia imóvel, os olhos cheios de lágrimas, incapaz de falar.
A partir daquele dia, Estêvão pediu uma licença prolongada.
Cuidou de tudo — alimentando-a, banhando-a, fazendo-lhe fisioterapia em casa.
A sua pequena casa tornou-se uma espécie de enfermaria improvisada, cheia de medicamentos, gazes e outros auxílios.
Alguns sugeriram interná-la num lar especializado. Mas ele recusou.
“Ela é minha esposa. Eu cuidarei dela. Ninguém mais.”
Todas as manhãs, levantava-se antes do amanhecer para lhe preparar papas de aveia, alimentá-la, e depois saía para trabalhar como eletricista.
À noite, sentava-se à beira da sua cama, lia para ela e massajava-lhe os membros na esperança de reativar os nervos. A primeira vez que um dedo se moveu ligeiramente, Estêvão chorou como uma criança.
Leonor quase não falava. Vivia em silêncio, por vezes assentindo ou chorando baixinho.
Estêvão interpretava aquele silêncio como desespero… mas também como gratidão. Nunca duvidou dela. Apenas sentia compaixão.
No início, familiares de ambos os lados visitavam-nos e ofereciam ajuda.
Mas, com o tempo, a vida afastou-os. As visitas tornaram-se raras. Estêvão não os culpava.
Sabia que cuidar de alguém paralisado é um caminho longo e solitário — nem todos têm força para o percorrer consigo.
A vida tornou-se rotineira, lenta e dolorosa — até que chegou aquele dia.
Estêvão estava a caminho de um reparo quando, de repente, lembrou-se de ter deixado a carteira em casa.
Lá dentro estavam documentos importantes, dinheiro e um recibo que precisava entregar. Voltou para trás, pensando que entraria apenas por um instante.
Mas quando abriu a porta… ficou petrificado.
A luz do entardecer entrava pela pequena janela, iluminando a cena… e, com ela, destruindo todo o seu mundo.
Na cama onde Leonor jazia há cinco anos — havia duas pessoas. Não apenas Leonor, mas também um homem, sentado ao seu lado. Alto, de camisa branca e calças bege. O rosto parecia-lhe vagamente familiar. Reconheceu-o de imediato: era o fisioterapeuta que contratara para a atender uma vez por semana.
Mas o que mais o chocou não foi ele… foi ela.
Leonor estava sentada. Erguida. Sem apoio.
E as suas mãos… estavam entrelaçadas com as do fisioterapeuta, trémulas, como se segurassem algo frágil… e intenso.
“Leonor…” murmurou Estêvão, as pernas a tremer. A sua voz mal se ouvia.
Ambos viraram-se. Os olhos de Leonor arregalaram-se, o rosto pálido. O homem retirou as mãos rapidamente e levantou-se como uma criança apanhada a roubar doces.
Estêvão não gritou. Não praguejou. Não bateu em ninguém. Apenas ficou ali, os olhos cheios de mil emoções.
“Há quanto tempo… há quanto tempo consegues andar?”
Leonor baixou o olhar. Após alguns segundos de silêncio, respondeu num sussurro:
“Quase oito meses.”
“Oito… meses?” repetiu Estêvão, em choque.
Lágrimas brotaram dos olhos de Leonor. Por primeira vez em anos, não eram de dor física.
— “Tinha medo… medo que descobrisses. Medo do teu olhar, das tuas expectativas… e de mim mesma. Já não sei quem sou. Estes cinco anos… vivi como um fantasma. E quando o meu corpo começou a sarar… não sabia o que fazer. Deste-me tudo… mas eu já não conseguia amar-te da mesma maneira.”
Estêvão não falou. O seu coração não estava partido apenas pela traição. Estava partido porque cinco anos de amor, sacrifício e fé… tinham-se tornado em nada. Ele sempre acreditara que o amor podia curar qualquer ferida. Mas esquecera-se que algumas feridas não estão no corpo… mas na alma.
O outro homem tentou sair, mas Estêvão ergueu uma mão.
— “Não tens de ir. Só quero uma coisa: a verdade.”
O fisioterapeuta baixou a cabeça:
“Eu nunca quis que isto acontecesse… Mas ela precisava de alguém que a ouvisse. Tu eras o seu marido, o seu cuidador… mas já não eras aquele que a entendia. Ela estava sozinha… mesmo dentro do teu amor.”
Estêvão nada mais disse. Saiu de casa, ainda segurando a carteira por causa da qual voltara — agora um símbolo do momento em que tudo mudou. O caminho de volta para o trabalho pareceu-lhe o dobro do comprimento.
Naquele dia, choveu.
Mais tarde, mudou-se para casa de familiares em Aveiro. Sem queixas. Sem processos. Assinou o divórcio rapidamente e deixou a casa para Leonor.
“Considera isto a minha gratidão por cinco anos de casamento,” escreveu, com uma caligrafia trémula mas firme.
Voltou a lecionar, desta vez numa pequena escola rural. A vida era mais lenta, mais triste… mas também mais leve.
Um dia, alguém lhe perguntou:
“Arrependes-te de ter sacrificado tanto?”
Estêvão abanou a cabeça e sorriu, cansado:
“Não. Porque quando se ama verdadeiramente, não se contabiliza o preço. Mas, a partir de agora… aprenderei a amar-me a mim primeiro, antes de amar outra pessoa.”
Esta história não tem vilões nem santos perfeitos. Estêvão não tinha culpa de amar demais. Leonor não tinha culpa de querer a sua vida de volta.
A verdadeira tragédia… foi que ambos acreditaram que o amor bastava para preservar tudo — até o que já tinha morrido em silêncio.