No funeral do meu irmão, esperava silêncio e tristeza, não uma carta lacrada que viraria o meu mundo de pernas para o ar. O que ele confessou dentro dela reescreveu tudo que eu pensava saber sobre a minha família.
O céu estava cinzento na manhã do funeral do meu irmão. Fiquei ao lado dos meus pais perto do altar da pequena capela. O meu casaco preto apertava-me. Os sapatos magoavam-me os pés. Mas não me importava. Nada disso importava. O que importava era que o Eduardo já não estava aqui.
As cadeiras estavam cheias de pessoas. Algumas apenas olhavam em frente. Outras choravam. A minha mãe estava rígida, com um lenço apertado na mão que nunca usou. Os olhos dela permaneceram secos.
“Estás bem, mãe?” sussurrei.
Ela acenou sem me olhar. “Sim, Leonor. Só estou cansada.”
Mas ela não estava bem. Estava estranha. Distante.
O meu pai inclinou-se para falar com um primo na segunda fila. Quando reparou que eu estava a olhar, virou-se de repente.
Algo não batia certo. Não era só tristeza. Era outra coisa.
Reparei que os meus pais olhavam para mim e depois desviavam o olhar, como se sentissem culpa.
A viúva do Eduardo, a Beatriz, estava sentada sozinha mais à frente. Os ombros tremiam enquanto enxugava as lágrimas. Dor verdadeira. Lágrimas verdadeiras. Nada naquilo era fingido.
Quando o serviço acabou, as pessoas saíram aos poucos. Algumas abraçaram-me. Outras não disseram nada. Quase nem reparei.
Fiquei junto a uma árvore no estacionamento, precisando de ar.
Foi então que vi a Beatriz, a caminhar na minha direção com algo nas mãos.
“Leonor, preciso de te dar isto.”
Ela estendeu-me um envelope. O meu nome estava escrito na frente, com a letra do Eduardo.
“Ele pediu-me que te entregasse isto. Depois.”
Olhei para aquilo. “Depois do quê?”
Ela desviou o olhar. “Depois de tudo.”
Agarrei-o com as mãos a tremer.
“Ele… disse mais alguma coisa?” perguntei.
Ela abanou a cabeça. “Não. Só que era importante.”
Não abri logo. Não queria. Ainda não.
Conduzi até casa em silêncio. O meu nome parecia estranho naquela caligrafia. Como se ele ainda estivesse aqui. Como se pudesse falar se eu abrisse aquilo.
Mas não abri. Ainda não. A minha mente voltou atrás. Para ele. Para nós.
O Eduardo nunca foi do tipo afetuoso. Sem abraços. Sem conversas até tarde. Nunca ligava só para dizer “olá”.
Mas ele sempre aparecia. Esteve na minha formatura do liceu, sentado na primeira fila, em silêncio, com as mãos juntas.
Quando tive gripe aos dezasseis anos e fui parar ao hospital, ele estava lá. Sentado. Quase não falava. Mas não saía.
Era como uma sombra. Sempre presente. Nunca próximo.
Às vezes, quando olhava para ele, sentia algo mais. Como se houvesse algo que ele queria dizer, mas nunca o fizesse.
Ele olhava para mim, abria a boca, e depois fechava-a. Agora nunca mais o faria.
Entrei em casa, sentei-me à mesa da cozinha e olhei para o envelope mais uma vez. Depois, quebrei o selo.
O papel estava dobrado ao meio. Cheirava um pouco a ele—livros antigos e colónia. As minhas mãos tremiam enquanto o desdobrava.
*Minha querida Leonor,*
*Não há maneira fácil de escrever isto. Comecei e parei esta carta mais vezes do que consigo contar. Se estás a lê-la, é porque nunca tive coragem de dizer isto à tua frente. Peço desculpa por isso.*
*Leonor… não sou apenas o teu irmão. Sou o teu pai.*
Olhei para aquelas palavras. O coração pareceu cair-me. O estômago embrulhou-se.
*Eu tinha quinze anos. Jovem. Tolo. Apaixonei-me por alguém que ficou assustada quando descobriu que estava grávida. Ela quis fugir. Os nossos pais intervieram. Disseram que te criariam como se fosses filha deles—e que eu poderia ser o teu irmão. Era suposto proteger-te.*
*Mas nunca deixei de ser o teu pai. Nem por um único dia.*
As lágrimas turvaram-me a visão. Limpei-as com a manga do meu casaco.
*Quis dizer-te cada vez que sorrias. Em cada aniversário. Em cada peça da escola. Quis dizer “Essa é a minha menina.” Mas não o fiz. Porque eu era um rapaz a fingir ser quem não era.*
*Por isso, vi-te crescer de longe. Aparecia quando podia. Mantinha-me perto, mas nunca demasiado perto. Esse era o acordo. E quanto mais crescías, mais difícil se tornava.*
*Peço desculpa por não ter lutado mais. Peço desculpa por não ter sido corajoso. Merecias mais do que silêncio. Merecias a verdade.*
*Amo-te, Leonor. Sempre.*
*Com amor, Pai*
Deixei cair a carta e cobri a boca com as mãos. Não conseguia respirar. Chorei ali mesmo, na mesa da cozinha. Soluços feios, altos. O peito doía-me. Toda a minha vida mudara no espaço de uma página.
Naquela noite, não dormi.
Na manhã seguinte, fui até casa da Beatriz. Ela abriu a porta devagar. Os olhos estavam vermelhos, como os meus.
“Leste a carta,” murmurou.
Assenti com a cabeça.
“Posso entrar?”
Ela fez-me sinal para entrar. Sentámo-nos na sala em silêncio.
“Só soube depois de nos casarmos,” disse ela finalmente. “Ele contou-me numa noite, depois de um pesadelo. Estava a tremer. Perguntei o que se passava, e ele contou-me tudo.”
Olhei para ela. “Porque é que ele nunca me contou?”
A Beatriz engoliu em seco. “Ele queria. TantEle queria contar-te mil vezes, mas o medo de te perder foi sempre maior do que a coragem de ser teu pai.