Havia um tempo em que o mundo era diferente, e as coisas aconteciam de um modo que hoje já não se vê.
“Leonor, teremos de seguir caminhos separados.”
António disse aquilo com aquele tom paternal que usava sempre que estava prestes a fazer alguma trapaça. Recostou-se na sua enorme cadeira, os dedos entrelaçados sobre a barriga.
“Decidimos que a empresa precisa de um ar renovado. Novo sangue. Compreendes.”
Olhei para ele—para o rosto bem cuidado, para a gravata cara que eu própria lhe ajudara a escolher para o último evento da empresa.
Compreendia? Ah, sim. Compreendia que os investidores começavam a falar numa auditoria independente, e ele precisava de se livrar da única pessoa que via o quadro completo. Eu.
“Compreendo,” respondi com calma. “Novo sangue—quer dizer a Catarina da receção, que confunde débito com crédito, mas tem vinte e dois anos e ri-se de todas as tuas piadas?”
Ele estremeceu.
“Não é questão de idade, Leonor. É apenas… a tua abordagem está um pouco desatualizada. Estamos a andar em círculos. Precisamos de um salto.”
Um “salto.” Aquela palavra repetia-se nos últimos seis meses. Eu ajudara a construir aquela empresa com ele, desde o início, quando nos espremíamos num escritório minúsculo com paredes a descascar.
Agora que o escritório brilhava, eu já não cabia no cenário.
“Tudo bem,” levantei-me com leveza, sentindo tudo dentro de mim ficar imóvel. “Quando devo limpar a minha secretária?”
A minha serenidade surpreendeu-o. Esperava lágrimas, súplicas, um escândalo. Tudo o que lhe daria o direito de se sentir um vitorioso magnânimo.
“Podes fazê-lo hoje. Sem pressa. Os recursos humanos tratarão da papelada. Indemnização, tudo como deve ser.”
Acenei com a cabeça e dirigi-me para a porta. Com a mão já no puxador, voltei-me.
“Sabes, António, tens razão. A empresa realmente precisa de um salto. E acho que serei eu a proporcioná-lo.”
Ele não percebeu. Apenas sorriu com condescendência.
No espaço aberto, onde cerca de quinze pessoas trabalhavam, o ambiente estava tenso. Todos sabiam tudo.
As raparigas desviaram o olhar, culpadas. Fui para a minha secretária. Uma caixa de cartão já estava lá. Eficiente.
Em silêncio, comecei a colocar os meus pertences dentro dela: fotos dos filhos, a minha chávena preferida, uma pilha de revistas profissionais.
No fundo da caixa, coloquei um pequeno ramo de lírios-do-vale que o meu filho me trouxera no dia anterior, sem motivo.
Depois, tirei da mala o que preparara antecipadamente: doze rosas vermelhas—uma para cada colega que estivera comigo todos aqueles anos. E uma pasta preta grossa, atada com cordões.
Percorri o escritório, entregando uma flor a cada um.
Disse palavras simples de agradecimento. Alguns abraçaram-me, outros choraram. Parecia uma despedida de família.
Quando regressei à minha secretária, só a pasta ficara nas minhas mãos. Peguei nela, passei pelos rostos perplexos dos meus colegas e voltei ao gabinete de António.
A porta estava entreaberta. Ele estava ao telefone, a rir.
“Sim, a velha guarda está a sair… Sim, é tempo de seguir em frente…”
Não me dei ao trabalho de bater. Entrei, aproximei-me da secretária dele e coloquei a pasta em cima dos seus papéis.
Ele ergueu o olhar, surpreendido, e cobriu o auscultador com a mão.
“O que é isto?”
“Isto, António, é a minha prenda de despedida. Em vez de flores. Aqui estão todos os teus ‘saltos’ dos últimos dois anos.
Com números, faturas e datas. Acho que vais achar interessante estudar no teu tempo livre. Especialmente a secção sobre ‘metodologias flexíveis’ para mover fundos.”
Virei-me e saí. Sentia o olhar dele a queimar primeiro a pasta, depois as minhas costas.
Ele rosnou algo ao telefone e desligou. Mas não olhei para trás.
Atravessei o escritório inteiro com uma caixa de cartão vazia nas mãos. Agora, todos olhavam para mim.
Nos seus olhos, li uma mistura de medo e admiração secreta. Uma rosa vermelha estava em cada mesa. Parecia um campo de papoilas depois de uma batalha.
À saída, fui alcançada por Rui, o chefe de informática. Um homem silencioso, que António considerava apenas uma função.
Há um ano, quando António tentou impor-lhe uma multa pesada por uma falha no servidor que fora culpa dele próprio, eu trouxe as provas e defendi-o. Ele não esquecera.
“Dona Leonor,” disse baixinho, “se precisar de alguma coisa… de algum dado… de cópias na cloud… sabe onde me encontrar.”
Apenas acenei em agradecimento. Era a primeira voz de resistência.
Em casa, o meu marido e o meu filho, agora na faculdade, esperavam. Viram a caixa nas minhas mãos e perceberam tudo.
“Então, resultou?” perguntou o meu marido, tirando-me a caixa das mãos.
“O primeiro passo está dado,” disse, tirando os sapatos. “Agora esperamos.”
O meu filho, futuro advogado, abraçou-me.
“Mãe, és incrível. Revisei todos os documentos que compilaste. Não há como escapar. Nenhum auditor encontrará falhas.”
Foi ele que me ajudou a sistematizar aquele caos de contabilidade dupla que eu recolhera em segredo no último ano.
A noite toda esperei por uma chamada. Ele não ligou. Imaginava-o sentado no escritório, folha após folha, o seu rosto bem cuidado a empalidecer lentamente.
A chamada veio às onze da noite. Coloquei-a no altifalante.
“Leonor?”—não havia um traço da suavidade anterior na voz dele. Apenas pânico mal disfarçado. “Olhei para os teus… documentos. Isto é uma piada? Chantagem?”
“Porque palavras tão duras, António?” respondi calmamente. “Isto não é chantagem. É uma auditoria. Uma prenda.”
“Percebes que posso destruir-te? Por calúnia! Por roubo de documentos!”
“E tu percebes que as cópias originais já não estão nas minhas mãos? E que, se algo acontecer a mim ou à minha família, estes papéis irão automaticamente para vários endereços interessantes? Por exemplo, para as finanças.
E para os teus principais investidores.”
Do outro lado da linha, ouvia-se a respiração pesada.
“O que queres, Leonor? Dinheiro? Volt”E quando, meses depois, a nova empresa que fundámos começou a florescer, António desapareceu da cidade, levando consigo apenas o peso dos seus próprios erros.”