No funeral do meu irmão, esperava silêncio e tristeza, não uma carta selada que viraria o meu mundo de pernas para o ar. O que ele confessou ali reescreveu tudo o que eu pensava saber sobre a minha família.
O céu estava cinzento na manhã do funeral do meu irmão. Fiquei ao lado dos meus pais, perto da frente da pequena capela. O meu casaco preto apertava-me. Os sapatos faziam-me doer. Mas não me importava. Nada disso importava. O que importava era que o Afonso se tinha ido.
As pessoas enchiam os bancos. Algumas apenas olhavam em frente. Outras choravam. A minha mãe estava sentada, rígida, apertando um lenço que nunca usou. Os olhos dela permaneceram secos.
“Estás bem, mãe?”, sussurrei.
Ela acenou com a cabeça, mas não olhou para mim. “Estou, Leonor. Só cansada.”
Ela não estava bem. Estava estranha. Distante.
O meu pai inclinou-se para um primo na segunda fila. Quando percebeu que eu estava a olhar, virou-se rapidamente.
Algo não era apenas tristeza. Era outra coisa.
Não parava de os apanhar a olhar para mim. O meu pai. A minha mãe. E depois desviavam o olhar como se se sentissem culpados.
A viúva do Afonso, a Joana, estava sentada sozinha algumas filas à frente. Os ombros tremiam enquanto limpava o rosto. Dor real. Lágrimas verdadeiras. Ela não fingia.
Quando o serviço terminou, as pessoas saíram em pequenos grupos. Algumas abraçaram-me. Outras não disseram nada. Quase nem reparei.
Fiquei debaixo de uma árvore perto do estacionamento, só precisando de ar.
Foi então que vi a Joana a caminhar na minha direção com algo nas mãos.
“Leonor, preciso de te dar isto.”
Ela estendeu-me um envelope. O meu nome estava escrito na frente, na caligrafia do Afonso.
“Ele pediu-me para te entregar isto. Depois.”
Fiquei a olhar para ele. “Depois do quê?”
Ela desviou o olhar. “Depois de tudo.”
Agarrei-o com as mãos trémulas.
“Ele… disse mais alguma coisa?”, perguntei.
Ela abanou a cabeça. “Não. Apenas que era importante.”
Não o abri imediatamente. Não queria. Ainda não.
Conduzi até casa em silêncio. O meu nome parecia estranho naquela letra. Como se ele ainda estivesse aqui. Como se fosse falar se eu o abrisse.
Mas não o fiz. Ainda não. A minha mente regressou ao passado. A ele. A nós.
O Afonso nunca foi do tipo afetuoso. Sem abraços. Sem conversas até tarde. Nunca ligava só para dizer olá.
Mas ele sempre aparecia. Esteve na minha formatura do secundário. Sentou-se na primeira fila, em silêncio, com as mãos cruzadas.
Quando tive gripe aos dezasseis anos e fui internada, lá estava ele. Só sentado. Não dizia muito. Mas não saía.
Era como uma sombra. Sempre presente. Nunca próximo.
Às vezes, quando olhava para ele, sentia algo mais. Como se houvesse algo que ele queria dizer, mas nunca o fez.
Olhava para mim, abria a boca e depois calava-se. Agora nunca mais o faria.
Entrei em casa, sentei-me à mesa da cozinha e olhei para o envelope mais uma vez. Depois, quebrei o selo.
O papel dentro estava dobrado uma vez. Cheirava ligeiramente a ele — a livros antigos e colónia. As minhas mãos tremiam enquanto o abria.
Minha querida Leonor,
Não há forma fácil de escrever isto. Comecei e parei esta carta mais vezes do que consigo contar. Se estás a lê-la, então nunca tive coragem de te dizer isto pessoalmente. Peço desculpa por isso.
Leonor… eu não sou apenas o teu irmão. Sou o teu pai.
Fiquei a olhar para as palavras. O meu coração parou. O estômago embrulhou-se.
Eu tinha quinze anos. Jovem. Estúpido. Apaixonei-me por alguém que ficou assustada quando descobriu que estava grávida. Ela queria ir embora, fugir. Os meus pais intervieram. Disseram que te criariam como se fosses deles — e que eu poderia ser o teu irmão. Era suposto ser para te proteger.
Mas nunca deixei de ser o teu pai. Nem por um único dia.
As lágrimas turvaram as palavras. Limpei-as com a manga do meu casaco.
Queria dizer-to em cada sorriso teu. Em cada aniversário. Em cada peça da escola. Queria dizer, “Essa é a minha menina.” Mas não o fiz. Porque eu era um rapaz a fingir ser alguém que não era.
Então vi-te crescer à distância. Aparecia quando podia. Mantinha-me perto, mas nunca demasiado perto. Esse era o acordo. E quanto mais cresceste, mais difícil se tornou.
Peço desculpa por não ter lutado mais. Peço desculpa por não ter sido corajoso. Tu merecias mais do que silêncio. Merecias a verdade.
Amo-te, Leonor. Sempre.
Com amor, Pai
Deixei cair a carta e cobri a boca com as mãos. Não conseguia respirar. Chorei ali mesmo, à mesa da cozinha. Soluços feios e altos. O peito doía. Toda a minha vida mudara no espaço de uma página.
Naquela noite, não dormi.
Na manhã seguinte, conduzi até casa da Joana. Ela abriu a porta devagar. Os olhos estavam vermelhos, como os meus.
“Leste-a”, murmurou.
Acertei com a cabeça.
“Posso entrar?”
Ela fez-me espaço. Sentámo-nos na sala dela em silêncio.
“Eu só soube depois de casarmos”, disse ela finalmente. “Ele contou-me numa noite, depois de um pesadelo. Estava a tremer. Perguntei-lhe o que se passava, e ele contou-me tudo.”
Olhei para ela. “Porque é que ele nunca me contou?”
A Joana engoliu em seco. “Ele queria. Tant— Mas tinha medo — sussurrou a Joana, os olhos marejados — medo que partisse o teu coração e que deixasses de olhar para ele como irmão.