João estava enfiando roupas numa mala quando entrei no nosso quarto. Sem explicação, sem olhar nos meus olhos, só empacotando freneticamente como se a casa estivesse a arder. “O que estás a fazer?”, perguntei.
Ele nem sequer levantou os olhos. “O que devia ter feito há anos.”
As palavras dele atingiram-me com a força de um soco. Vinte e dois anos de casamento, e era assim que acabava. “João, para”, agarrei-lhe o braço, mas ele sacudiu-me. “Fala comigo. O que se passa?”
Finalmente, ele fitou-me, e o que vi assustou-me: nada. Nenhuma culpa, nenhuma tristeza, apenas determinação fria. “Vou-me embora, Sara. Hoje.”
“Há outra pessoa?”, a pergunta escapou-me antes que pudesse pará-la.
Ele hesitou. “Isto não é sobre ninguém. É sobre eu precisar de respirar outra vez.”
Mas eu sabia. A forma como o telemóvel dele passou meses virado para baixo, as reuniões tardias que se prolongavam cada vez mais. Eu ignorara as suspeitas, mas agora gritavam dentro de mim.
“Preciso que transfiras a minha parte da poupança para a minha conta pessoal”, disse, fechando a mala com finalidade.
Foi aí que o pânico realmente chegou. Dinheiro. A poupança para a faculdade da nossa filha Leonor. Desci as escadas a correr, os pés descalços a bater no soalho. Leonor olhou para mim, o rosto de doze anos marcado por preocupação. “Mãe, o que se passa?”
“Nada, querida. O teu pai só vai fazer uma viagem.” A mentira soube amarga.
Peguei no portátil e entrei na conta bancária com dedos trémulos. Olhei para o ecrã em choque. A conta à ordem tinha 247 euros. A poupança estava a zero. O fundo da faculdade da Leonor—aquele que alimentámos durante doze anos, que devia ter 70.000 euros—mostrava zero.
“Não”, a palavra saiu como um sussurro. “Não, não, não.”
Atualizei a página. Os números não mudaram. Verifiquei o histórico. Três dias antes, enquanto eu estava no meu clube de leitura, João transferira tudo. Não só a parte dele, não só o nosso dinheiro, mas o futuro da Leonor também.
Os passos na escada fizeram-nos virar-nos. João apareceu, arrastando a mala. Passou por nós como se fôssemos móveis.
“É assim?”, encontrei a voz. “Vinte e dois anos, e vais-te embora assim?”
Ele parou, a mão na maçaneta. “Deixei-te uma mensagem a explicar tudo.”
“Não quero uma mensagem. Quero que olhes para a tua filha e expliques porque a abandonas.”
Leonor levantou-se. Não chorou, não correu para ele. Apenas o observou com aqueles olhos inteligentes, tão parecidos com os dele.
João olhou para ela durante uns segundos. “Vais entender quando fores mais velha”, disse. Depois, olhou para mim. “Não compliques mais do que já está.” A porta fechou-se atrás dele com um clique suave.
“Ele vai voltar?”, perguntou Leonor.
Queria mentir, mas ela já sabia a resposta. “Acho que não, minha querida.”
Ela anuiu, processando. “Ele levou o nosso dinheiro?”
A pergunta apanhou-me desprevenida. Como é que ela sabia? “Uma parte”, respondi cautelosamente.
“A minha poupança da faculdade também?”
Só consegui acenar. Leonor levantou a tigela de cereais, levou-a até à pia, enxaguou-a e guardou-a. Depois, virou-se para mim com uma expressão que nunca vira no seu rosto jovem. “Mãe, não te preocupes”, disse. “Tratei disto.”
A casa pareceu diferente naquela primeira semana sem João. Leonor, porém, movia-se pelo nosso mundo desfeito como se nada tivesse mudado. Todos os dias às 7h15, ela aparecia na cozinha, vestida, mochila organizada. Beijava-me a face e dizia: “Bom dia, Mãe.”
Era perturbador. Uma noite, estava ao telefone com a minha irmã, Joana. Enquanto discava, ouvia Leonor lá em cima, o som rápido do teclado. Assumi que estivesse a falar com amigas. Depois de desligar, fiz o jantar favorito dela. Bati à porta. “Podes entrar.”
Leonor estava à secretária, o ecrã do portátil virado para longe de mim. Fechou-o rapidamente quando entrei. “Trouxe-te comida, querida.”
“Obrigada, Mãe.” Ao colocar o prato na mesinha-de-cabeceira, olhei para a secretária. Papéis espalhados, livros e uma impressão de emails, parcialmente escondida. Os nomes no topo fizeram-me gelar: João e Beatriz. As minhas mãos tremiam quando puxei o papel. As mensagens eram de há três semanas, a discutir encontros, reservas de hotel e “lidar com a Sara”.
“Mãe”, a voz de Leonor fez-me saltar. Ela estava à porta, com o prato vazio, os olhos calmos e analíticos.
“Leonor, de onde veio isto?”
Ela pousou o prato e fechou a porta. “O pai não é muito bom com palavras-passe.”
“Há quanto tempo sabias da Beatriz?”
“Seis semanas. Quanto ao dinheiro, descobri no dia antes de ele ir embora.”
Seis semanas. Enquanto eu vivia na inocência, a minha filha carregava este conhecimento. Senti-me enjoada. “Porque não me disseste?”
“Queria ter a certeza”, respondeu, parecendo mais a rapariga de doze anos que era. “E queria descobrir o que fazer.”
“Isto não é tua responsabilidade, querida.”
“É, sim”, a voz dela era firme. “Ele roubou o meu dinheiro da faculdade. Mentiu-nos. Alguém tinha de fazer alguma coisa.”
Olhei em volta do quarto com novos olhos. “O que mais sabes?”
Leonor levantou-se e tirou um caderno debaixo do colchão. As páginas estavam cheias de anotações, capturas de ecrã e informações de contas. A minha filha tinha espiado o próprio pai.
“O pai acha que é esperto, mas é descuidado”, explicou. “Usa a mesma palavra-passe para tudo. Não limpa o histórico.”
“Leonor, isto… invadir contas… não é legal.”
Ela encarou-me, a expressão demasiado madura. “Também não é legal roubar 70.000 euros da filha.”
“Mostra-me tudo”, pedi.
Ela abriu o portátil e acedeu a uma pasta chamada “Projeto de Ciências”. Dentro, havia dezenas de ficheiros: Extratos Bancários, Mensagens, Provas de Fraude.
“Começou com o segundo telemóvel do pai”, ela disse, clicando numa pasta. “Ele achou que o escondera, mas eu vi-o a usá-lo.” O ecrã encheu-se de mensagens entre o meu marido e Beatriz Sousa, uma colega do escritório de contabilidade. Planeavam um futuro juntos.
“Piora, Mãe”, clicou noutra pasta. “A Beatriz anda a roubar clientes há dois anos.” As provas eram avassaladoras: transferências, faturas falsas, extratos adulterados.
“Leonor, como conseguiste entrar nos sistemas deles?”
“Ela usa a mesma palavra-passe para tudo: Sousa2011. O apelido e o ano em que se formou. Encontrei no perfil dela.” Leonor encolheu os ombros. “As pessoas são previsíveis.”
Clicou noutra pasta, e o meu mundo desmoronou outra vez. Extratos com o meu nome, de contas que nunca abri. Pedidos de crédito com o número de contribuEla fechou o portátil, olhou para mim com serenidade e disse: “Agora, Mãe, vamos viver a nossa vida sem precisar de olhar para trás.”