A chamada para encerrar minha missão final chegou mais cedo do que eu esperava.
Um momento eu estava revisando o último relatório de segurança na sala de operações em Lisboa.
No seguinte, já empacotava minha mala.
Quarenta anos de uniforme me ensinaram a agir rápido.
Mas desta vez era diferente.
Não estava apenas deixando uma base.
Estava deixando a vida que construí para proteger meu país, levando-a no bolso do meu casaco.
O peso do relógio de bolso do meu pai pressionava contra mim.
Ele o dera antes da minha primeira missão, dizendo para eu sempre voltar para casa.
E eu voltei—várias vezes.
Mas este retorno não estava planejado.
Não havia avisado ninguém, nem mesmo o meu filho.
O voo noturno para o Porto foi um borrão de zumbido de motor e pensamentos inquietos.
Olhei pela janela para o fino risco do amanhecer sobre o Atlântico e me perguntei se o Rodrigo estaria no trabalho ou ainda dormindo quando eu batesse em sua porta.
Imaginei o sorriso dele—o jeito como os olhos se apertavam ao rir—e isso bastou para me levar pela turbulência.
Quando aterrissei, o calor do Algarve me envolveu como um cobertor pesado.
O motorista do táxi carregou minha mala sem dizer uma palavra.
“Albufeira”, disse a ele, dando o endereço do Rodrigo.
Na estrada, as palmeiras balançavam no ar úmido.
Tentei ignorar o aperto no peito.
Não tínhamos falado muito ultimamente—minha rotina, a vida dele.
Mas sempre acreditei que poderíamos retomar de onde paramos.
O táxi entrou em sua rua, e algo em mim mudou.
A grama à frente da casa estava alta.
A caixa de correio, abarrotada de envelopes.
As cortinas, cerradas contra o sol.
Não parecia uma casa.
Parecia abandonada.
Desci do carro, o calor cortante no pescoço, e estava prestes a bater quando uma voz familiar me chamou do outro lado da rua.
Dona Margarida, vizinha do Rodrigo desde que ele se mudara, estava com um regador na mão, o rosto pálido.
“Mariana”, disse, aproximando-se rapidamente.
“Você não sabe… ainda não.”
Minha voz estava firme, mas meus dedos apertaram o relógio.
“O que aconteceu?”
“O Rodrigo está na UTI há duas semanas.
Levaram-no de ambulância no meio da noite.
E a Beatriz”—hesitou, desviando o olhar—”esteve num iate em Vilamoura.
Postando fotos no Instagram.”
O ar pareceu ficar pesado enquanto as palavras dela se assentavam como chumbo no meu peito.
Não lembro da viagem até o Hospital de Albufeira.
Um instante estava no quintal do Rodrigo.
No seguinte, atravessava as portas de vidro do hospital, o coração batendo forte nos meus ouvidos.
Dentro, o cheiro de desinfetante era forte—daquele que gruda nas roupas mesmo depois de sair.
No balcão da recepção, dei meu nome e o dele.
Os olhos da enfermeira piscaram de reconhecimento, e ela me direcionou à UTI.
Quinto andar.
Sala 512.
Peguei o elevador, segurando o relógio do meu pai com tanta força que o metal marcou minha palma.
O corredor estava silencioso, exceto pelo ruído constante dos monitores.
Quando entrei no quarto do Rodrigo, o som ficou mais alto.
Inescapável.
Meu filho estava deitado na cama, a pele pálida, o corpo frágil sob o roupão do hospital.
Tubos e fios o cobriam como um mapa cruel.
Um homem de jaleco branco se virou do monitor.
“Dr. Tomás Cruz”, disse, a voz baixa mas firme.
“Seu filho tem câncer gástrico avançado.
Se tivéssemos descoberto antes, talvez houvesse mais tempo.
Ele está aqui há duas semanas.
Sem visitas.”
As palavras pareceram irreais, como se pertencessem à vida de outra pessoa.
Approximei-me, meus dedos tocando a mão dele.
Sua pele estava fria, as veias frágeis sob meu toque.
Suas pálpebras tremeram.
Lentamente, abriram-se, e vi os mesmos olhos cor de mel que brilhavam quando ele era um menino no campo de futebol.
“Eu te amo, Mãe”, ele sussurrou, a voz fraca como um sopro.
Antes que eu pudesse responder, o som constante do monitor se transformou em um tom contínuo.
Enfermeiras correram para dentro, e o Dr. Cruz me levou para o corredor.
Fiquei parada, ouvindo os comandos acelerados, o arrastar de pés, o baque das mãos contra seu peito.
Minutos depois, a porta se abriu.
O médico saiu, a expressão pesada.
“Sinto muito.
Fizemos tudo o que podíamos.”
O relógio em minha mão parecia mais pesado do que nunca, e tudo o que pude pensar foi que eu havia chegado tarde demais.
Voltei para a casa do Rodrigo com o cheiro do hospital ainda em mim.
As chaves pareceram estranhas em minha mão quando subi os degraus do alpendre.
Ao abrir a porta, uma onda de ar viciado me atingiu—daquele que se instala quando ninguém cuida de um lugar há semanas.
A sala estava escura.
Cortinas fechadas.
Copos vazios na mesa de centro, uma fina camada de poeira nas bordas.
Na cozinha, embalagens de comida e louça suja se amontoavam na pia.
O zumbido da geladeira era o único sinal de vida.
No balcão, uma pilha de correspondência não aberta encostava na parede.
Rasguei os envelopes—avisos de corte de energia, contas atrasadas, notificações de hipoteca.
Meu peito apertou enquanto os lia.
O Rodrigo nunca fora descuidado com dinheiro.
Entrei em seu escritório, a cadeira levemente torta, como se alguém tivesse saído às pressas.
Papéis cobriam a mesa—alguns amassados, outros dobrados.
Entre eles, encontrei uma pilha de recibos.
O primeiro era do aluguel de um iate em Vilamoura: 150.000 euros—datado da mesma semana em que Rodrigo fora internado.
Outro, de uma boutique de luxo em Lisboa, mostrava quase 200.000 euros em joias.
Havia jantares em hotéis à beira-mar, roupas de grife—tudo pago com o cartão do Rodrigo.
As datas coincidiam perfeitamente com os dias em que ele estava lutando pela vida sozinho.
Sentei-me pesadamente na cadeira, os recibos tremendo em minhas mãos.
O rosto da Beatriz veio à minha mente—o sorriso que ela exibia nas redes sociais, como Dona Margarida descrevera.
Eu confiara que ela estaria ao lado do meu filho, cuidando dele quando eu não pudesse estar lá.
Em vez disso, ela esvaziara suas contas enquanto ele lutava pela vida.
Organizei os recibos em uma pilha—cada um uma acusação silenciosa—e soube que era apenas o começo do que encontraria.
Deixei os recibos sobre a mesa, meus dedos fechando ao redor do telefone.
O número dela ainda estava salvo, embora eu não o usasse há meses.
Por um instante, olhei para a tela, meu dedo pairando, o peso da descoberta me empurrando para frente.
A chamada conectou quase instantaneamente.
O rosto da Beatriz apareceu, enquadrado pelo branco brilhante do convés de um iate.
Música alta ecoava ao fundo, misturada a risadas.
Ela segurava uma taça, a bebida alaranjada balançando na borda.
Atrás dela,E enquanto o vento soprava suave sobre o jardim que plantámos juntos, finalmente entendi que a justiça, como a terra, só floresce quando cuidada com as mãos certas.





