Sentei-me num banco de madeira à frente do Hospital da Universidade de Coimbra, com as mãos tão apertadas que os meus nós dos dedos ficaram brancos. O ar da primavera trazia o cheiro doce das flores das amendoeiras, mas nada chegava até mim. O meu marido, João Ribeiro, estava deitado na unidade de cuidados intensivos atrás daquelas paredes, a lutar pela vida contra um inimigo que nunca vimos chegar.
João era invencível. Era o tipo de homem que trabalhava doze horas por dia a fazer móveis à mão e ainda chegava a casa com energia para cozinhar. Tinha um sorriso que fazia acreditar que tudo ficaria bem. Ele era o meu porto seguro, e agora, vê-lo definhar, sentia-me a afundar-me na areia movediça.
Há seis meses, pensávamos que tínhamos uma vida inteira pela frente. Depois, ele chegou a casa uma noite, pálido e exausto. O cansaço não passou, agravou-se, transformou-se em hematomas inexplicáveis e noites em que mal conseguia respirar. O médico disse palavras que não pareciam reais: anemia aplástica. O corpo dele estava a destruir a medula óssea, a fechar a fábrica do sangue. Sem um transplante de células estaminares, disseram, não havia esperança.
Tentei ser forte, segurando a mão dele e sussurrando: “Vamos ultrapassar isto.” Mas todas as noites, chorava sozinha na casa de banho. Porque sabia algo que o João não sabia. Ele cresceu num orfanato, sem conhecer os pais, sem sequer saber se tinha irmãos. Sem familiares próximos, as hipóteses de encontrar um dador compatível eram quase nulas.
A espera podia levar meses, talvez anos, e o João não tinha esse tempo. Hoje cedo, o médico chamou-me à parte. As palavras dele perfuraram-me. “Ana, estamos a ficar sem opções. Se não encontrarmos um dador compatível em breve…” Não acabou a frase. Não precisava.
Fiquei ali sentada, com lágrimas a escorrerem-me pelo rosto, sentindo-me completamente inútil. Eu era enfermeira, passava a vida a ajudar os outros a sarar, mas não podia salvar o homem que mais amava. A tristeza já começara a apertar o meu coração com dedos gelados. E então, como se o mundo já não fosse cruel o suficiente, ouvi algo. Uma conversa que mudaria tudo.
Conheci o João numa noite em que a vida parecia leve e normal. Tinha acabado o meu exame final de enfermagem, e as minhas amigas arrastaram-me até a um pequeno café no centro de Lisboa. Lembro-me de ele entrar, com as calças manchadas de pó do trabalho, uma confiança tranquila que fazia virar a cabeça. Sorriu timidamente quando os nossos olhos se cruzaram e perguntou se o lugar à minha frente estava ocupado. Conversámos durante horas sobre tudo e nada. Quando ria, os olhos dele ficavam cheios de vincos nos cantos, e algo em mim simplesmente soube.
Dois anos depois, estávamos debaixo de uma velha oliveira, a dizer os nossos votos. Usei os brincos de pérola da minha mãe, e o João chorou abertamente quando me viu a caminhar em direção a ele. Mudámo-nos para uma casinha velha que ele insistiu em arranjar sozinho. E conseguiu. Passava os fins de semana a lixar soalhos, a construir prateleiras, e até fez uma cadeira de balanço para mim como presente de aniversário. Aquela cadeira ainda está na nossa varanda.
A vida parecia completa, mesmo que não fosse perfeita. A única coisa em falta eram filhos. Tentámos durante anos. Os médicos disseram que o meu corpo não cooperava. A cada teste negativo, sentia-me mais quebrada. Mas o João nunca me culpou. Nas noites em que chorava, ele abraçava-me e sussurrava: “Ana, isto não muda o quanto te amo.”
“Tu mereces uma mulher que te possa dar uma família,” soluçava.
Ele levantava o meu queixo suavemente e dizia: “Ana, não casei contigo por causa dos filhos. Casei contigo por ti. Tu és a minha família.”
Assim era o João: firme, gentil, altruísta. Quando adoeceu, o nosso mundo desmoronou-se. E, mesmo ali, fraco e pálido, ele ainda tentava ser o forte.
Uma tarde, depois de outra ronda de transfusões, o médico deu-me a má notícia. Saí para o pátio do hospital, desesperada por ar. Foi então que ouvi. Dois funcionários estavam em pausa, a conversar sem saber que eu escutava.
“Sabes aquele tipo na UCI, o Ribeiro? Parece-se com um gajo que vive perto de Monsanto. Juro, é como ver a mesma pessoa.”
O meu coração parou. Monsanto, uma pequena vila a poucas horas dali. Seria coincidência? Ou poderia significar que o João tinha família lá, alguém que talvez fosse compatível? Pela primeira vez em semanas, senti algo que não ousara sentir: esperança.
Na manhã seguinte, pedi licença de emergência, fiz as malas e conduzi. A estrada levou-me a caminhos rurais e às colinas de Monsanto. Estacionei perto de uma mercearia local, segurando uma foto do João no telemóvel.
“Com licença,” disse ao dono da loja, um homem de cinquenta anos com olhos gentis. “Estou à procura de alguém. Não sei o nome dele, mas dizem que se parece com isto.” Mostrei-lhe a foto.
Os olhos dele arregalaram-se. “Deves estar a falar do Tiago Nunes. Vive perto dos campos, na Rua das Oliveiras. Sim, parece-se mesmo.”
As minhas mãos tremeram no volante enquanto conduzia até ao que podia ser a resposta a todas as minhas preces. A casa era velha e desgastada. Bati à porta, e um homem apareceu, mais alto do que esperava, com cabelo castanho-claro. Os olhos dele—prendei a respiração. Eram do mesmo azul intenso que os do João.
“Posso ajudar-te?” A voz dele era grave e cautelosa.
Estendi o telemóvel com as mãos a tremer. “Este… este é o meu marido. Chama-se João Ribeiro. Disseram que se parece contigo.”
Ele franziu a testa, a olhar para o ecrã. A expressão dele mudou—confusão, incredulidade, algo quase doloroso. “Bolas,” disse, a olhar para mim de forma mais suave. “Quem és tu?”
“Ana. Sou a mulher dele. Ele está no hospital. Muito doente. Precisa de um transplante de medula.” A minha voz quebrou. “Disseram que não tem família. Mas depois ouvi falar de ti, e eu… tive de vir.”
O Tiago Nunes sentou-se à minha frente, inclinando-se. Olhou para a foto outra vez, abanando a cabeça devagar. “Acho… acho que ele pode ser meu irmão.”
AquE naquele momento, entre lágrimas e sorrisos, percebi que a vida, por mais dura que fosse, ainda guardava milagres nos seus recantos mais improváveis.