Diário de um Homem
João e eu estávamos casados há cinco anos. Desde o primeiro dia em que me tornei sua esposa, acostumei-me às suas palavras duras e aos olhares distantes. Ele não era violento nem grosseiro, mas a sua indiferença fazia o meu coração murchar um pouco mais a cada dia.
Depois do casamento, vivíamos na casa dos pais dele, num bairro de Lisboa. Todas as manhãs, acordava cedo para cozinhar, lavar roupa e limpar. Todas as noites, sentava-me e esperava que ele chegasse a casa, só para ouvi-lo dizer:
“Já comi.”
Muitas vezes me perguntei se aquele casamento era diferente de ser apenas uma inquilina. Tentei construir, tentei amar, mas tudo o que recebi em troca foi um vazio invisível, impossível de preencher.
Até que um dia, João chegou a casa com o rosto frio e inexpressivo. Sentou-se à minha frente, entregou-me os papéis do divórcio e disse, com voz seca:
“Assina. Não quero perder mais tempo, nem eu nem tu.”
Fiquei paralisada, mas não surpreendida. Com lágrimas nos olhos, peguei na caneta com mãos trêmulas. Todas as memórias das noites em que o esperei à mesa, das dores de barriga que suportei sozinha no meio da madrugada, voltaram como facadas.
Depois de assinar, fiz as malas. Naquela casa, nada era meu, exceto algumas roupas e a velha almofada com que sempre dormia.
Quando arrastava a mala para a porta, João atirou-me a almofada com sarcasmo:
“Leva isso e lava-a. Já está quase a desfazer-se.”
Agarrei a almofada, com o coração apertado. Era mesmo velha — o tecido estava desbotado, com manchas amareladas e rasgões. Era a almofada que trouxera da casa da minha mãe, numa aldeia do Alentejo, quando vim estudar para a cidade. Guardei-a depois de me casar porque não conseguia dormir sem ela.
Ele queixava-se, mas eu nunca a deixei. Saí daquela casa em silêncio.
De volta ao meu quarto alugado, sentei-me atordoada, a olhar para a almofada. Lembrei-me das palavras dele e decidi tirar a fronha para lavar. Pelo menos ficaria limpa e eu poderia dormir sem sonhar com memórias dolorosas.
Quando abri o fecho, senti algo estranho. Havia algo escondido no algodão. Meti a mão e travei. Um pequeno embrulho, cuidadosamente envolto num saco de plástico.
Abri-o com mãos trêmulas. Dentro, havia um maço de notas de 50 euros e um papel dobrado em quatro.
Desdobrei-o. Reconheci a letra da minha mãe, trémula e hesitante:
“Minha filha, este é o dinheiro que juntei para ti, caso passes por dificuldades. Escondi-o na almofada porque sabia que terias orgulho demais para o aceitar. Nunca sofras por um homem, minha querida. Amo-te.”
As lágrimas caíram sobre o papel amarelado. Lembrei-me do dia do meu casamento, quando a minha mãe me deu a almofada, dizendo que era macia para eu dormir bem. Eu ri e disse:
“Estás a ficar velha, mãe, que ideia tão estranha. João e eu vamos ser felizes.”
Ela sorriu, com um olhar distante e triste. Apertei a almofada contra o peito, como se ela estivesse ali, a acariciar o meu cabelo.
Afinal, ela sempre soube quanto uma filha sofreria se escolhesse o homem errado. Tinha-me preparado um plano de escape — não uma fortuna, mas o suficiente para me salvar do desespero.
Naquela noite, deitei-me na cama dura do quarto alugado, abraçada à almofada, as lágrimas a molharem a fronha. Mas desta vez, não chorava por João. Chorava porque amava a minha mãe.
Chorava porque me sentia sortuda — tinha um lugar para onde voltar, uma mãe que me amava e um mundo enorme à minha espera.
Na manhã seguinte, acordei cedo, dobrei a almofada e guardei-a na mala. Decidi arrendar um quarto mais pequeno, perto do trabalho. Iria enviar mais dinheiro à minha mãe e viveria sem ter de tremer à espera de uma mensagem fria de alguém.
Sorri para o meu reflexo no espelho. Aquela mulher de olhos inchados, a partir daquele dia, viveria por si, pela mãe que envelhecia longe e por todos os sonhos que ainda não realizara.
Aquele casamento, a velha almofada, o sorriso de desdém… tudo isso era só o fim de um capítulo triste. Quanto à minha vida, ainda havia muitas páginas por escrever, com as minhas próprias mãos fortes.
Aprendi que, por mais que o amor de um homem falhe, o de uma mãe nunca desaparece. E às vezes, ele está escondido onde menos esperamos.