**Diário Pessoal – Uma Manhã que Mudou Tudo**
Nunca fui um homem de andar a pé. Rodrigo Mendes, o tipo de homem que chega num carro com motorista, cercado por assistentes, a cidade movendo-se ao seu redor como se fosse dele. Mas hoje foi diferente. A minha noiva, Mariana Almeida, insistiu que caminhássemos os últimos quarteirões até à reunião — algo sobre a luz do verão ser “demasiado perfeita para desperdiçar”.
Estávamos a meio de uma rua movimentada quando, de repente, Mariana parou. A mão dela cravou-se no meu braço, as unhas pressionando o tecido da minha camisa.
“Rodrigo,” sussurrou, “não olhes agora… mas há um rapaz sentado do outro lado da rua.”
Segui o seu olhar.
O menino estava descalço, equilibrado na borda de um muro de pedra, os joelhos puxados contra o peito. Tinha um rosto magro, um cabelo claro e uma covinha na bochecha esquerda — um detalhe que eu tinha gravado na memória como uma cicatriz. Mas os olhos… aqueles olhos fizeram-me esquecer como respirar. Azuis como o mar. Exatamente como os da minha falecida mulher.
Doze anos. Doze anos desde que o meu filho de cinco anos desaparecera num parque cheio de gente.
A voz de Mariana mal se ouvia. “Ele parece—”
“O meu filho,” terminei, as palavras amargas como ferrugem.
A polícia tinha deixado de ligar há anos. As buscas desapareceram. Os cartazes de desaparecido foram substituídos por outros rostos. Mas eu nunca desisti. Mantive o quarto do rapaz exatamente como era — a cama por fazer, os carrinhos de brincar ainda alinhados na prateleira — como se ele pudesse entrar pela porta a qualquer momento.
E agora… ali estava ele. Ou estaria?
Mariana aproximou-se primeiro, agachando-se à frente do menino. “Querido, estás bem?”
O rapaz mal levantou os olhos. “Estou,” murmurou, embora a voz estivesse rouca, como se não falasse há dias.
“Como te chamas?” perguntei, a garganta apertada.
Ele hesitou. “… Daniel.”
O meu coração bateu forte. O nome do meu filho era Daniel.
Antes que pudesse dizer mais, o olhar de Daniel fugiu para o fundo da rua. Um homem alto, de casaco de cabedal gasto, saiu de um beco, o rosto uma máscara de fúria.
“Tu!” rosnou. “Volta ao trabalho!”
Daniel levantou-se a correr. O homem seguiu-o. E eu, sem pensar, corri atrás de ambos.
O rapaz era rápido — esgueirando-se entre os transeuntes, virando em ruas laterais. As minhas pernas ardiam, mas o pânico no peito era mais forte. Já tinha perdido o meu filho uma vez. Não o perderia outra vez.
Daniel desapareceu por uma porta lateral de um armazém abandonado. Quando cheguei lá, a pesada porta de metal fechou-se com um estrondo. Lá dentro, ouviram-se vozes abafadas.
“Se falares com estranhos outra vez, vais arrepender-te,” rosnou o homem.
“Eu não—” A voz do rapaz quebrou. Ouviu-se um baque seco.
O meu sangue gelou. Bati na porta. “Abra! Agora!”
A porta entreabriu-se o suficiente para o homem espreitar, com um sorriso torto. “Segue o teu caminho, ricaço. Este miúdo é meu.”
“Em que mundo isso é legal?” A minha voz era baixa, perigosa.
O sorriso dele vacilou. “Ele trabalha para mim. Ganha o seu.”
“Ele é uma criança,” gritei. “E acabou-se.”
Mariana já estava ao telefone com a polícia. O som de sirenes aproximou-se. Os olhos do homem ficaram nervosos.
Empurrei a porta. Daniel tropeçou na minha direção, segurando o lado. Sem pensar, envolvi-o nos meus braços.
“Está tudo bem, filho,” sussurrei, sem conseguir parar-me. “Estás seguro agora.”
Ele não se afastou.
Na esquadra, Daniel sentou-se enrolado num cobertor, evitando os olhares. Quando um agente lhe perguntou, gentilmente, o seu nome completo, ele hesitou, depois olhou diretamente para mim.
“… Acho que é Mendes,” disse baixinho. “Daniel Mendes. Alguém me chamava assim… antes de tudo correr mal.”
O meu peito apertou. Mal ousava respirar quando um detetive me puxou para o lado.
“Encontrámos um registo de desaparecimento de há doze anos. Tudo coincide. Vamos confirmar com o teste de ADN, mas, Sr. Mendes… acho que encontrou o seu filho.”
No dia seguinte, os resultados chegaram. Era oficial.
Daniel era meu.
O quarto dele estava exatamente como o deixara — as paredes azuis-claras, os carrinhos de brincar, a torre de Lego inacabada na secretária. Os olhos de Daniel arregalaram-se.
“Guardaste… tudo?”
A minha voz falhou. “Disse a mim mesmo que não mudaria nada até voltares para casa.”
O rapaz atravessou o quarto e abraçou-me — forte, desesperado, a tremer. Fechei os olhos, segurando-o como se quisesse compensar cada segundo perdido.
Na porta, Mariana observava em silêncio. Ali não estava um milionário, nem um magnata. Ali estava um pai, finalmente completo.
Mas algures na cidade, um homem de casaco de cabedal ainda andava livre. E eu sabia — se alguém tentasse levar o meu filho outra vez, teria de passar por mim primeiro.