Enquanto Ele Gastava Nossos Sonhos, Eu Acolhi um Misterioso Forasteiro

Há dias em que acordamos com uma sensação — algo está prestes a acontecer. Nem bom, nem mau, apenas uma mudança no ar. Foi assim naquela segunda-feira de fevereiro. A manhã começou como sempre: fiz café, enquanto Henrique já estava à mesa, grudado no telemóvel. Calado. Só os dedos batiam nervosos na madeira.

— Beatriz, olha… — quebrou o silêncio de repente. — Amanhã vou viajar.

A colher quase me escapou das mãos.

— Para onde?

— Para o Algarve. Sol, praia, finalmente descansar. Já comprei o bilhete.

Fiquei parada, mexendo o café que esfriava, sentindo os pensamentos embaralharem-se. Dois anos a juntar dinheiro para uma viagem a dois! Todos os meses a apertar o cinto, a recusar-me coisas. Até o casaco que tanto queria adiei por causa desta viagem.

— E eu? Ainda não me confirmaram as férias…

— E então? — encolheu os ombros. — Achas que é fácil para mim? Os nervos já não aguentam mais esta vida cinzenta.

Os nervos… E os meus, não contam?

— Mas o dinheiro é dos dois, poupámos juntos…

— E daí? — levantou-se de um salto. — Eu também trabalho, e decido quando vou descansar!

Foi então que desconfiei pela primeira vez. Nos últimos meses, tornara-se um estranho. O telemóvel sempre à mão, até à casa de banho o levava. Antes, deixava-o em qualquer lado sem pensar.

Vejo-o a arrumar as malas. Um calção de banho novo, que reparei no armário, e uma camisa colorida — nada do seu estilo. Quando é que comprou isto?

— Se sobrar dinheiro, trago-te um íman, — disse, fechando a mala.

Um íman… Que generoso.

A porta bateu. Fiquei sozinha. Pensei — será que estou a exagerar? Talvez ele precise mesmo de fugir. Só não pensou em mim.

Sentada, a refletir, eis que o telemóvel dele, esquecido na mesa, toca. O ecrã acendeu-se — uma mensagem. A password escondia o texto, mas as primeiras palavras eram visíveis: «Meu gatinho, estou no aeroporto. Espero por ti no…»

“Meu gatinho.” Há cinco anos que não me chamava assim. Dizia que éramos adultos, sem espaço para infantilidades.

Dez minutos depois, voltou — pelo telemóvel. Viu-me, o olhar desconfiado.

— O que estás a fazer aqui?

— Estou em casa, — respondi. — Há problema?

Agarrou o telemóvel, verificou se não o tinha mexido. Deu-me um beijo paternal na testa:

— Não fazes birras. Quando voltar, trago-te uma lembrança.

E foi-se.

Eu continuei sentada. O coração aos saltos: quem era esta “gatinha”? Porque estava ele tão nervoso?

Num instante, acordei. Vestiu-me rápido e segui para o aeroporto. Sim, o táxi era caro, mas já não me importava. Queria a verdade.

E vi-a. Abraços, risos, uma rapariga de vinte e cinco anos — cabelo comprido, corpo esguio, vestida com a camisa colorida que eu vira no nosso armário. Henrique sussurrava-lhe algo ao ouvido, ela ria-se, encostada a ele.

Um ano e meio a poupar para estarmos juntos. E ele planeava tudo com outra.

Quis aproximar-me, dizer-lhe tudo, ou até bater-lhe. Mas já seguiam para o embarque. Tarde demais.

Saí, sentei-me num banco e desatei a chorar. Não apenas lágrimas — soluços, como se o coração me arrancassem. Os transeuntes olhavam, mas eu não ligava.

Começou a chover — primeiro uma chuvisqueira, depois mais forte. Fiquei ali, enregelada, incapaz de me levantar.

Uma voz surgiu:

— Menina, desculpe…

Viro-me — um homem à minha frente. Roupa desgastada, rosto gelado, cabelo despenteado.

— Precisa de ajuda? — perguntou, preocupado.

— Eu? — ri-me amargamente. — Já nada me ajuda.

— Nada é tão mau como parece, — respondeu, calmo. — Mas… não conhecerá algum trabalho? Mesmo temporário?

Olhei para ele e pensei: ambos perdemos hoje. Só que ele, pelo menos, não esconde a derrota.

— Quer saber? — decidi. — Venha comigo. Come decentemente, aquece-se.

— A sério? — surpreendeu-se. — Mas não me conhece.

— É um maníaco? — perguntei.

— Não, — sorriu. — A vida deu-me estas voltas.

— Então vamos. Nem há comida em casa — o Henrique devorou tudo antes de ir.

No táxi, o motorou resmungou, mas ofereci mais — e ele acalmou-se.

Pelo caminho, apresentou-se: Ricardo. Engenheiro de formação, perdera o emprego, depois a casa. A mulher fora para casa da mãe, dizendo: “Quando arranjares trabalho, voltas.”

Entendi. Cada um com a sua cruz.

Em casa, foi direto ao radiador, esfregando as mãos.

— Pode tomar um duche, — sugeri. — Toalhas no armário, o roupão do Henrique está lá.

— Você tem certeza? — hesitou.

— Tenho. O meu marido está num resort com a amante, o roupão está livre.

Enquanto ele se lavava, aqueci sopa. Será que perdi o juízo? Levar um desconhecido para casa? Mas o dia fora um turbilhão, como se o mundo tivesse virado do avesso.

Quando saiu da casa de banho, não acreditei. Outra pessoa. Quarenta anos, postura firme, olhos inteligentes. No roupão do Henrique, parecia ridículo — o meu marido era baixo e magro.

— Tem a certeza que não é sem-abrigo? — perguntei, observando-o.

— Claro que não, — riu-se. — Só a vida prega-me partidas.

À mesa, começámos a conversar. Ricardo fora engenheiro numa construtora, gerira projetos. Depois, uma fase negra: a empresa faliu, ficou meses sem salário, depois fechou. Procurar emprego foi inútil — só queriam jovens, e ele já passara dos quarenta.

— As poupanças duraram pouco, — suspirou. — A mulher aguentou um tempo, mas depois disse: “Não quero viver na miséria.”

— Amor até às primeiras dificuldades, — concordei.

— Pois.

Contei-lhe a minha história: o aeroporto, a mensagem da “gatinha”, o ano e meio de poupanças e a partida repentina do Henrique.

— E agora? — perguntou.

— Peço o divórcio. O apartamento foi da minha avó, tenho trabalho. Vou-me safar.

— E filhos?

— Não aconteceu, — suspirei. — Ele sempre adiava, dizia que era cedo. Agora percebo — não queria mesmo.

— Talvez seja melhor assim, — disse ele, cauteloso. — Com um marido assim…

— Pois. Pelo menos não tenho de explicar a um filho porque é que o pai foi de férias com outra.

Depois do jantar, pediu para ver as notícias — há muito que não as via. Concordei. Fui para a cozinha arrumar, e quando voltei, sentei-me na poltrona e adormeci. Acordei de manhã — alguém cobrira-me com um cobertor. Ricardo já não estava. Uma nota na mesa: “Muito obrigado. Salvou-me. Quando arranjar trabalho, retribuirei.”

E fiquei triste. Como se algo bom e puroE quando, meses depois, nos vimos novamente, os nossos olhares já não estavam cheios de dor, mas de uma promessa silenciosa de que, juntos, poderíamos recomeçar.

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