Esposa médica ajuda mendigo ferido na rua, e marido arrogante a expulsa. Um ano depois, ele acaba em sua mesa

A noite já caía sobre Lisboa, envolvendo a cidade numa névoa húmida e suave. O ar estava fresco, e as longas sombras dos candeeiros alongavam-se pela alameda deserta. Leonor, cirurgiã de profissão, e o marido, Guilherme, regressavam para casa depois de um jantar com amigos. O silêncio era tão profundo que um gemido sufocado, vindo de uns densos arbustos de jasmim junto ao passeio, soou como um grito.

— Ouviste? — sussurrou Leonor, parando de repente.

— Ouvi, — resmungou Guilherme, sem abrandar o passo. — Deve ser algum bêbado. Vamos, está a começar a chuviscar.

Mas Leonor já se afastava do asfalto, pisando a relva húmida. Anos de instinto médico não lhe permitiam ignorar alguém em sofrimento.

— Tenho de ver, — disse com firmeza. — Pode estar mal.

— Porque te metes sempre onde não és chamada? — rosnou ele, sem sequer olhar para trás. — Não estás de serviço. Para com os heroísmos. Vamos, estou cansado.

Ela não respondeu, já se embrenhando entre os ramos. No meio da folhagem, um homem estava encolhido no chão, as mãos pressionadas contra o lado. A luz da lua, filtrada pelas folhas, revelava uma mancha escura e húmida a alastrar no casaco. Leonor ajoelhou-se — os dedos logo se encheram de sangue quente. O ferimento era grave, provavelmente uma facada.

— Chama uma ambulância! — gritou para o marido, que permanecia no passeio com uma expressão de nojo.

Guilherme aproximou-se a contragosto, mas nos seus olhos não havia compaixão, apenas irritação.

— Pronto, agora armaste-te em heroína, — resmungou. — Vêm aí a polícia, interrogatórios, uma noite sem dormir! Para quê complicar?

Sem esperar resposta, virou-lhe as costas e seguiu caminho, deixando-a sozinha na escuridão, de joelhos ao lado de um homem moribundo. Naquele instante, uma barreira invisível ergueu-se entre eles, intransponível.

— Acalme-se, respire fundo, — disse Leonor com voz calma e firme, inclinando-se sobre o ferido. — A ajuda já vem. Vai ficar tudo bem.

A sua serenidade, tantas vezes testada nas salas de operação, acalmou o homem. Ele olhou para ela, os olhos cheios de gratidão silenciosa. Quando as sirenes ecoaram ao longe, Leonor correu para guiar os paramédicos. A equipa agiu com precisão, preparando o transporte.

— Conhece-o? — perguntou-lhe um médico mais velho.

— Não. Sou médica também — cirurgiã.

— Entendido, coleguinha. Ele não tem documentos. Pode ir amanhã ao Hospital de Santa Maria para prestar declarações? Precisamos do seu relato.

— Claro, — assentiu Leonor.

A ambulância desapareceu na noite. A casa ficava perto, mas ela caminhou devagar, adiando o momento do regresso. A atitude de Guilherme queimava-lhe por dentro.

Lembrou-se do dia em que se conheceram: ele fora seu paciente, partira a perna numa queda de bicicleta. Charmoso, brincalhão, cortejara-a com tanta persistência que ela, cansada da solidão e dos turnos, cedeu. A primeira vez que vira a mãe dele veio à memória — o olhar glacial, o comentário seco: «O meu filho precisa de uma mulher que trate da casa, não que ande às voltas com bisturis». Na altura, Leonor sorrira. Agora, aquele sorriso parecia ingénuo. Talvez a sogra tivesse razão.

Guilherme esperava-a na cozinha, o rosto distorcido pela raiva.

— Pronto, satisfeita com o teu heroísmo? — provocou assim que ela entrou. — Podias nem ter voltado. Que espécie de esposa és? O jantar não está feito, as camisas não estão passadas, recusas-te a largar os turnos! Casei-me para quê? Para viver sozinho?

Leonor sentou-se, exausta. Não tinha energia para discutir.

— Guilherme, sou médica. Um homem estava a morrer ali.

— Não quero saber! — rugiu ele. — Quero uma mulher que esteja em casa, não que ande a revirar arbustos! Não suporto o teu trabalho, as tuas noites, as tuas prioridades!

Cada palavra cortava como uma lâmina. Ele falava da sua vocação com tanto ódio que lhe faltou o ar.

— Estou farto de ti e do teu maldito juramento, — cuspiu, levantando-se. Entrou no quarto e trancou a porta com um clique sonoro.

Aquela noite, Leonor dormiu no sofá da sala. De manhã, com a cabeça pesada e o peito apertado, fez algo pequeno, mas significativo: não preparou o pequeno-almoço a Guilherme. Não lhe passou a camisa. Em vez disso, parou diante do espelho, maquilhou-se levemente, realçando os olhos e os lábios.

Quando entrou na sala dos médicos, os colegas receberam-na com surpresa e carinho:

— Leonor, estás radiante hoje! O Guilherme propôs-te casamento outra vez? — gracejou a enfermeira Matilde.

— Pareces um milhão de euros, Doutora Leonor! — exclamou o anestesista Rui.

Ela sorriu, envergonhada. Tinha-se esquecido de como era ser vista, de ouvir elogios, de ser bem-vinda.

Ao almoço, o chefe de cirurgia aproximou-se dela:

— Leonor, lembras-te do homem que encontraste ontem? Trouxeram-no para cá — o Santa Maria recusou, a UCI está cheia.

Ela assentiu. O colega baixou a voz:

— Mas parece que ele não é nenhum sem-abrigo. Acordou, fez uma chamada — e em meia hora apareceram jipes com seguranças e advogados. É o Diogo, um empresário importante. Foi vítima de uma emboscada — rivais de negócios. Salvaste a vida a um homem poderoso.

Leonor sorriu levemente. Pensou em como seria irónico contar a Guilherme. Mas não teve oportunidade.

Ao chegar a casa, a porta estava trancada. Bateu. Foi Guilherme quem abriu, o olhar gelado e distante.

Na entrada, as suas malas, apressadamente arrumadas.

— Pensei e decidi, — disse ele, sem emoção. — Não és a mulher certa para mim. Somos diferentes. Leva as tuas coisas e vai-te embora.

Leonor ficou paralisada. Da suite saiu uma rapariga jovem — bonita, vestindo o roupão de seda dela. Sob o tecido, destacava-se uma barriga redonda e falsa.

— Esta é a Sara, — apresentou ele. — Está à espera do meu filho. Ela quer estabilidade, eu quero uma mulher que esteja em casa. Tu só serves para os turnos. Podes ir.

Sara sorriu timidamente, acariciando a barriga postiça. Aquele teatro torpe foi a gota final.

Leonor não disse uma palavra. Nada de gritos, lágrimas ou recriminações. Apanhou as malas e saiu. Dentro dela, um vazio tão profundo que nem o eco sobrevivia.

Não tinha para onde ir. A família estava noutra cidade. As amizades desvaneceram-se ao longo dos anos de casamento e trabalho. O único lugar onde se sentia segura era o hospital.

Num táxi, foi para o quarto de turno, deixou as malas e, sem se despir, dirigiu-se à sala dos médicos. O DoutO Doutor Silva, o cirurgião mais antigo, olhou para ela — para o seu rosto pálido e as malas aos pés — e compreendeu tudo num instante: “Fica, Leonor, o sofá da sala está sempre disponível, e já devias saber que esta casa é mais tua do que alguma vez foi a dele.

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