Ele costumava ser um miúdo barulhento. Irrequieto. Nunca parava quieto.
Mas desde que voltámos da quinta no outono passado, ele já não fala acima de um sussurro.
E agora só dorme no estábulo. Enroscado à Estrela, a vaca.
A mãe acha graça.
O pai diz que é uma fase.
Mas eu ouvi o que ele disse naquela noite, quando julgou que ninguém estava por perto.
Ele sussurrou ao ouvido da Estrela:
“Eu não lhes disse que fui eu. Sei que viste, mas também não contaste. Obrigado.”
A Estrela não se mexeu.
Apenas pestanejou, devagar. Como se compreendesse.
Quando finalmente o enfrentei, ele chorou.
Não de medo—mas de alívio.
Agarrou-me a mão e disse:
“Não abras a caixa de ferramentas. Não lhes mostres a fotografia.”
Eu não sabia de que caixa ele falava.
Até esta manhã.
Quando vi o pai a tirá-la da carrinha.
E lá dentro—
Congelei. O ar faltou-me na garganta.
Não era o que esperava. Era pior.
Havia uma única fotografia empoeirada, e o que mostrava estava além de qualquer coisa que eu pudesse compreender.
Era uma foto antiga da quinta—uma que eu não reconhecia—de um estábulo coberto de trepadeiras, mas havia algo errado.
O estábulo na fotografia… ainda estava de pé.
O que visitámos no outono passado? Tinha ardido até aos alicerces há dois anos.
Engoli em seco.
O pai pareceu notar a minha confusão. Olhou para mim, com uma expressão mais séria. “Não te lembras deste sítio, pois não?”
“Não…”, murmurei, a voz rouca, tentando juntar as peças.
“O teu irmãozinho não devia ter visto aquilo”, acrescentou ele, a voz mais baixa do que o habitual, quase envergonhada.
“Visto o quê?”, perguntei, desesperado.
O pai não respondeu.
Em vez disso, virou a fotografia. E foi então que eu a vi.
Ali, no canto da foto, ao lado do estábulo, estava uma sombra.
Não era uma pessoa. Não era nada que eu alguma vez tivesse visto.
Era uma figura estranha, sobrenatural—alta, imponente, e mais escura do que o resto da imagem.
Um arrepio percorreu-me a espinha.
Voltei-me para o meu irmão, que agora estava no topo das escadas, o corpinho quase invisível.
“Não a abras”, disse, quase suplicando.
A voz dele estava rouca, e os olhos, arregalados de terror.
“O que viste, Tomás?”, perguntei, suave.
Ele olhou para a fotografia. Depois abanou lentamente a cabeça.
“Não posso dizer.”
“Porquê?”
Mas os olhos do Tomás ficaram distantes. Parecia perdido nos pensamentos, como se algo o impedisse de continuar.
Estremeceu e murmurou: “A Estrela sabe a verdade.”
Isso não fazia sentido. Que verdade?
Não era próprio do Tomás dizer estas coisas, especialmente com uma expressão tão séria. Ele era sempre o primeiro a rir-se de uma piada ou a fazer graça.
Mas não havia nada de engraçado nisto.
Não conseguia sacudir a sensação de que algo estava terrivelmente errado, mas não sabia por onde começar.
Não era a fotografia que me assustava—era a maneira como o Tomás estava a agir.
Algo acontecera naquela quinta. Algo que nós não sabíamos.
Algo que o assustara tanto que ele já não conseguia dormir dentro de casa.
Naquela noite, deitei-me, mas o sono não veio.
Pensava na fotografia. Na figura.
Depois, os meus pensamentos voltaram-se para o incêndio do estábulo.
Essa era a questão—porque é que voltámos à quinta no outono passado? Porque é que o pai nos levou lá depois de tanto tempo?
Nunca falara nisso antes.
Eu nunca perguntei.
Mas agora, sentia que faltava algo.
Eu precisava de saber o que acontecera naquela quinta. Tinha de descobrir.
Na manhã seguinte, encontrei-me novamente à beira da propriedade.
O estábulo já não existia, reduzido a cinzas e entulho. Mas havia algo no ar, algo que me deixou a pele arrepiada.
Avançei, o coração a bater com força.
O vento levantou-se, e ouvi um som fraco, como um sussurro.
Virei-me, mas não havia ninguém atrás de mim.
Ninguém, exceto a Estrela.
A vaca.
Ela estava ali, no sítio exato onde antes ficava o estábulo.
Congelei.
Nunca sentira um silêncio tão inquietante. Era como se o mundo estivesse a prender a respiração, à espera que algo acontecesse.
“Estrela”, disse, baixinho, aproximando-me.
Ela pestanejou devagar, quase como se soubesse.
O olhar dela era pesado, como se carregasse um segredo.
Fiquei ali por muito tempo, a olhar para ela.
O tempo parecia ter parado.
Foi então que percebi…
Tinha de descobrir o que o Tomás sabia.
Tinha de saber o que a Estrela sabia.
Porque, no meu íntimo, sabia que tudo isto estava ligado.
A caixa de ferramentas. A fotografia. A sombra no canto.
Eram peças de algo maior.
Nessa noite, após o jantar, já não consegui resistir.
Subi ao quarto do Tomás.
Ele não estava lá, mas a porta estava aberta. Ouvi-o murmurar qualquer coisa lá do estábulo.
Não hesitei.
Entrei, pisando suavemente o soalho de madeira fria.
Ali, encolhido num canto, estava o Tomás, aconchegado ao lado quente da Estrela.
Ajoelhei junto dele.
“Tomás, o que aconteceu?”
Ele não respondeu, os olhos fixos na escuridão.
“Não lhes vou contar”, sussurrou, depois de um longo silêncio.
Agarrei-lhe a mão.
“Diz-me, Tomás. Por favor. Preciso de saber o que se passa.”
O Tomás fechou os olhos, e, pela primeira vez, vi uma brecha na sua resistência.
“Eu não queria”, disse, quase inaudível. “Não queria que ninguém se magoasse.”
O meu coração disparou.
“O que queres dizer? O que fizeste?”
“Eu não queria libertá-lo”, continuou o Tomás. “Mas quando o vi… não consegui controlar-me.”
Fiquei sem entender.
“Do que estás a falar? O que viste?”
Ele hesitou, depois sussurrou: “A sombra. A da fotografia. Era real.”
O sangue gelou-me nas veias.
“O que queres dizer? O que aconteceu?”
A voz do Tomás tremia. “Eu… eu abri a caixa de ferramentas.”
Eu congelei.
A caixa de ferramentas. Era disso que ele me avisara.
“O que estava lá dentro, Tomás?”
A voz dele quebrou.
“Havia algo lá. Estava no estábulo. O incêndio não foi um acidente.”
Senti um nó na garganta.
“O que estás a dizer?”
“Eu libertei algo”, sussurrou. “Algo que não devíamos ter visto.”
Não sabia o que pensar.
Mas, de repente, compreendi.
Não queria acreditar, mas sabia que era verdade.
E a Estrela também sabia.
Levantei-me, o coração aos pulos.
Tinha de descobrir o que estava escondido naquela caixa de ferramentas.
No dia seguinte, abriE quando olhei para dentro, percebi que a sombra nunca tinha saído da quinta—só estava à espera de ser encontrada.