Ele estava ao lado de um carro preto, chorando tão forte que o corpo todo tremia. Descalço, com o pescoço queimado pelo sol, os dedinhos agarrados à maçaneta como se ela fosse abrir se ele implorasse o suficiente.
Olhei em volta. Ninguém correndo. Ninguém chamando por ele.
Ajoelhei-me. “Ei, amiguinho, onde está a tua mãe ou o teu pai?”
Ele chorou ainda mais. “Quero voltar para dentro!”
“Dentro de onde?”, perguntei com calma.
Ele apontou para o carro. “Do filme! Quero voltar para o filme!”
Pensei que talvez ele se referisse ao cinema na mesma rua, tentei abrir a porta do carro—trancada. Olhei para dentro. Nenhuma cadeirinha. Nenhum brinquedo. Nada.
Levei-o em direção ao cinema, perguntando se ele tinha ido com alguém. Ele acenou devagar. “Com o meu outro pai.”
Isso parou-me. “O teu outro pai?”
Ele confirmou. “O que não fala com a boca.”
Antes que pudesse perguntar o que aquilo significava, um segurança do centro comercial chegou num carrinho de golfe. Expliquei tudo.
Percorremos a praça de alimentação, a área de jogos, até a segurança. Todos os pais que abordámos disseram o mesmo: “Desculpe, não é meu.”
A segurança reviu as imagens das câmaras.
E foi aí que tudo ficou estranho.
Ninguém o deixou lá.
Ninguém o acompanhou.
Ele apareceu.
Num instante, não estava lá—no seguinte, estava descalço, ao lado do carro preto.
Então o segurança disse, “Espere… olhe para a sombra.”
Aproximei-me. E vi.
A sombra do menino segurava a mão de alguém.
O ar na sala da segurança ficou pesado. O segurança—Carlos, de acordo com o crachá—reviu a gravação mais três vezes. Todos vimos a mesma coisa. Primeiro quadro: estacionamento vazio. Segundo quadro: um menino descalço. Mas a sua sombra? Estendia-se para o lado, os dedos abertos, agarrando algo que não estava lá.
Carlos esfregou a nuca. “Isto é algum tipo de brincadeira?”
Eu ainda segurava o menino, que agora estava quieto, a cabeça apoiada no meu ombro. A respiração era calma, como se estivesse cansado, não assustado.
“Qual é o teu nome, amiguinho?”, perguntei baixinho.
Ele murmurou algo que soou como “Gonçalo.” Talvez “Guilherme.” Difícil dizer.
“Gonçalo, sabes onde fica a tua casa?”
Ele abanou a cabeça.
A segurança chamou a polícia, claro. Protocolo. Mas eu não conseguia ignorar a sensação de que isto não se resolvia com protocolo.
Quando os agentes chegaram, contei-lhes tudo. Eles viram a gravação, fizeram as perguntas de sempre. O menino não respondeu muito. De vez em quando, murmurava algo sobre “o outro pai,” mas quando pressionado, calava-se.
Levaram-no para um hospital local para avaliação. Disseram que notificariam os serviços sociais. Deixei o meu número caso ele se lembrasse de algo.
Aquilo devia ter sido o fim.
Não foi.
Duas noites depois, acordei com batidas. Não na porta da frente—na janela do quarto.
Eram quase duas da manhã.
Primeiro, pensei que estava a sonhar. Mas então ouvi de novo, três pancadinhas suaves no vidro.
Afastei a cortina.
Era ele. Gonçalo. Descalço, no relvado úmido. Ainda com a mesma camisola amarela. O cabelo molhado, talvez de suor ou do nevoeiro.
Saí a correr, o coração a bater. “Gonçalo?! Como—como chegaste aqui?”
Ele não falou. Estendeu-me um carrinho de brincar, daqueles de metal, e colocou-o na minha mão. Estava quente, como se tivesse estado no bolso.
“Não gosto do hospital,” sussurrou. “Não me deixam falar com o meu pai.”
“Qual deles?”, perguntei, sabendo a resposta.
“O silencioso.”
Levei-o para dentro, sem saber o que mais fazer. Liguei para a polícia, expliquei tudo. Chegaram em dez minutos, surpresos ao vê-lo encolhido no meu sofá.
“O miúdo desapareceu do hospital,” murmurou um deles. “A segurança diz que ele estava a dormir e, no instante seguinte, sumiu. As enfermeiras juram que a porta nunca abriu.”
Perguntei se havia pistas. Abanaram as cabeças.
Antes de saírem, um dos agentes chamou-me de lado. “Disseste que o miúdo mencionou um ‘outro pai’? O que não fala com a boca?”
“Sim.”
“Tivemos um caso há anos… parecido. Cidade diferente, a mesma história. Um rapaz desapareceu por horas. Quando reapareceu, só dizia isso. ‘O pai que fala sem boca.’ Ninguém acreditou.”
“Descobriram o que aconteceu?”
O agente hesitou. “Ele desapareceu de novo. Desta vez, para sempre.”
Naquela noite, não consegui dormir. Pensei naquela sombra. No carrinho. Na forma como Gonçalo tinha aparecido como um gato vadio que, de alguma forma, sabia que eu não o afastaria.
Pesquisei. Notícias antigas, fóruns obscuros, relatórios policiais. Encontrei um tópico—de três anos atrás—sobre uma menina que aparecera do nada no estacionamento de uma livraria.
Ela dissera que a “mãe silenciosa” a levara para lá. Depois, desapareceu do abrigo duas semanas depois, diretamente do quarto trancado.
Todas as histórias terminavam igual: aparição inexplicável, menção a um adulto silencioso, breve estadia, depois sumiço.
Algo estava a acontecer. Algo que ninguém queria acreditar.
No dia seguinte, visitei o hospital. Tentei obter mais informações. A equipa foi evasiva, citando leis de privacidade. Deixei o meu número outra vez. Pedi que dissessem à assistente social que eu queria ajudar. Que estava disposto a acolhê-lo, se necessário.
Ao sair, passei por um funcionário da limpeza com um carrinho cheio de panos e garrafas de lixívia. Ele olhou para mim e disse, de repente, “Aquele menino não está perdido. Está à procura.”
Virei-me. “À procura do quê?”
O homem não respondeu. Empurrou o carrinho para o elevador e desapareceu.
Três noites depois, aconteceu de novo.
Desta vez, ouvi risadas. Agudas, ecoando no corredor.
Peguei numa lanterna e abri a porta do quarto com cuidado.
Gonçalo estava lá, sentado no chão, empilhando livros.
Olhou para mim. Sorriu. “Ele trouxe-me de novo.”
Ajoelhei-me. “Quem, Gonçalo? O pai silencioso?”
Ele acenou. “Ele diz que és seguro. Como a senhora antes.”
“Que senhora?”
Gonçalo pensou um pouco. “A que canta para as plantas.”
O sangue gelou-me. Era a minha tia Maria, já falecida. Ela criou-me depois dos meus pais morrerem num acidente. Costumava cantar para o jardim, dizia que ajudava as rosas a crescer. Morreu há seis anos.
“Não há como saberes isso,” murmurei.
Ele inclinou a cabeça. “Ele mostrou-me.”
Desta vez, não chamei a polícia. Não soube o que dizer.
Em vez disso, fiz panquecas.
Ele sorriu enquanto comia, como se nada fosse estranho, e sussurrou: “Obrigado por me guardares até ele voltar.”