Num dia de outono, chegou um chamado urgente à estação de ambulância: “Criança de cinco anos, febre alta, perda de consciência, possível parada cardíaca.” A equipe foi enviada para um bairro de mansões luxuosas — não exatamente o local mais comum para uma ambulância. Famílias assim normalmente preferem médicos particulares ou clínicas próprias.
Os médicos Beatriz e Diogo chegaram ao local. Quando a ambulância parou em frente à casa imponente, trocaram um olhar de confusão — pacientes desse perfil raramente recorriam ao sistema público.
Mas assim que a porta se abriu, Beatriz congelou. Diante dela estava o seu ex-marido — André Gonçalves Monteiro. O tempo o havia mudado: o rosto mais marcado, o olhar ansioso.
“Meu Deus, Beatriz! Por favor, salve o meu filho!” ele quase gritou. “Eu pedi especificamente por você. Sei que são os melhores. O Pedro está inconsciente há mais de dez minutos!”
“Você fez reanimação?” perguntou Beatriz rapidamente.
“Sim, começamos. Mas eu vim abrir a porta, e a minha mulher continuou a massagem cardíaca.”
“Então vamos até ele, agora!” ordenou ela, entrando primeiro.
Beatriz sempre fora confiante. Não por ingenuidade, mas por uma alma que via o melhor nas pessoas. Foi essa qualidade que a levou a André, anos atrás. Todos alertavam: “Ele é um conquistador, calculista, egoísta”. Mas ela insistia: “O meu André é diferente.”
Conheceram-se na própria ambulância, onde ela começara como jovem médica e ele era chefe de departamento. Na época, ela tinha vinte e cinco anos — esbelta, de cabelos claros e olhos verdes amigáveis. Parecia frágil, até mesmo de avental branco, com uma trança longa que depois cortou — afinal, não era prática para o trabalho.
André também causava impressão. Cirurgião de formação, salvara centenas de vidas. Ombros largos, barba cuidada, tudo nele transmitia força e confiança. Adorava andar de mota preta depois do turno para aliviar o stress. O cabelo curto, com algumas mechas grisalhas, dava-lhe um ar sério, e o olhar penetrante parecia ver através das pessoas.
Quando Beatriz começou a trabalhar, todos esperavam mais um caso passageiro. André era conhecido como um conquistador incorrigível. Mas com ela, ele agia diferente — gentil, contido, quase protetor. Isso intrigava até os colegas mais cínicos.
O relacionamento evoluiu rápido. Depois de um ano de passeios de mota, casaram-se. Para muitos, foi uma surpresa — quem diria que um solteirão como André se casaria a sério?
A vida não era fácil. Os salários de médicos eram baixos, a burocracia enorme, e o trabalho, exaustivo. Muitos desistiam, mas Beatriz e André permaneceram. Escolheram a medicina por vocação, não pelo dinheiro.
Maria Isabel, mãe de André, entendia perfeitamente. Trabalhara a vida toda num hospital, sobrevivera aos anos difíceis da juventude, criara o filho sozinha. O marido, Gonçalo, desaparecera em circunstâncias misteriosas nos anos 80. Ela fora mãe, pai e sustento da família.
Maria adorou Beatriz logo de cara. Uma rapariga de uma vila pequena, que se estabelecera na cidade grande sem influências de família. Modesta, trabalhadora, de cabeça fria e coração bom. Para Beatriz, a sogra tornou-se uma segunda mãe, já que perdera a sua cedo. Entre elas, criou-se uma ligação sincera.
Foi Maria quem teve a ideia de abrir uma clínica privada. André hesitou — via risco, principalmente para alguém da idade dela. Mas Beatriz apoiou. Maria assumiu a maior parte do trabalho: arranjar espaço, tratar de licenças, gerir reformas, contratar funcionários. André ajudava financeiramente e com contactos, mas o motor por trás era mesmo a mãe.
Nos primeiros anos, a clínica cresceu devagar mas com firmeza. Maria revelou-se não só uma médica experiente, mas uma gestora talentosa. Parecia ter nascido para liderar, mesmo sem experiência prévia.
André e a mãe trouxeram os primeiros pacientes. Investiram tudo — tempo, dinheiro, energia. Beatriz também não ficou de fora. Pelo contrário, foi decidido que ela faria uma segunda especialização: dermatologia e estética. Com a sua experiência, conseguia conciliar estudos com o trabalho na ambulância. Até após turnos pesados, ia às aulas à noite, raramente dormindo o suficiente.
Mas essa rotina teve um preço — não tiveram filhos. Nunca houve tempo. André levava na desportiva, mas Beatriz preocupava-se. Sabia que o relógio biológico não esperava, mas não queria falhar a família. Depois de perder a mãe, só tinha o marido e a sogra como apoio.
Quando a clínica decolou e Beatriz pendurou o segundo diploma, o seu nome espalhou-se pela cidade. A jovem médica ganhou fama de resolver até os casos mais complicados. O seu nome tornou-se sinónimo de esperança. E, mês após mês, as finanças da família melhoraram.
Passaram-se cinco anos. Beatriz continuou a trabalhar sem parar, deixando a gestão da clínica para os outros. André, por outro lado, envolvia-se ativamente — consultando advogados, contabilistas, planeando com a mãe. Sabia todos os detalhes, apesar de, no papel, a dona ser Maria Isabel. Mas, com o tempo, o controle passou para ele.
O primeiro golpe veio de onde menos esperavam. Um anónimo nas redes sociais enviou mensagem a Beatriz: “O teu marido está a trair-te.” Ela riu-se — confiava nele cegamente. Mas, quando Maria morreu subitamente à mesa de jantar, aquela mensagem voltou a assombrá-la. A ambulância chegou rápido, mas já era tarde. “Era a sua hora”, disseram.
No funeral, Beatriz parecia perdida. Emagrecera, estava irreconhecível entre rostos familiares. A tal mensagem martelava-lhe a cabeça, assim como uma conversa antiga com uma cliente, Joana, que dissera casualmente:
“O André ainda anda de mota?”
“Não, já não tem tempo.”
“Estranho. Vi-o há dias naquela mota enorme, com riscas verdes. Havia uma mulher com ele. Morena.”
Na altura, Beatriz ignorou. Mas agora, aquilo parecia parte de um quebra-cabeças que não soubera montar.
Poucas semanas após o funeral, descobriu a verdade. André não queria dividir a herança — mas o pior não era isso. Ele levava uma vida dupla há anos. A amante era a jovem secretária da clínica, uma morena chamada Sara, com quem planejava refazer a vida. A diferença de idade — vinte anos — não os incomodava. O que começara como caso tornara-se “amor”. E Sara estava grávida.
“Como pudeste?” sussurrou Beatriz, sentindo algo desmoronar dentro de si.
“Desculpa, Bia. Nunca quis magoar-te. Mas… com ela, sinto-me jovem outra vez. E, já agora, ela está grávida. Quatro meses.”
“Vergonha… Tu sempre disseste que não era hora. E agora, de repente, é?”
“Não faças cenas. Deixo-te o apartamento.”
Beatriz olhou em volta, para as paredes onde passara anos da sua vida.
“E a clínica, ficas com ela? Pelo testamento da tua mãe, claro.”
“Sim. Mas não te preocupes — já arranjei substituta para ti.”
“Até nisso és frio…” murmurou. “Tudo bem. Vai. Suma-te antes do amanhecer.”
O divórcio foi rápido, sem dramas. A funcionária do registo civil, ao vê-los, nem sequer sugeriu reconciliação.
O que mais doía não era apenas a traição, mas a possBeatriz sorriu ao ver os seus filhos brincando no jardim, sabendo que, apesar de todas as dores do passado, a vida lhe devolvera algo muito maior — uma família verdadeira e um coração em paz.