Meu nome é Diogo. Sou motorista do Autocarro 14 em Coimbra. Faço o mesmo percurso há 22 anos. Vejo sempre as mesmas caras. Principalmente caras cansadas. Especialmente os idosos que esperam no cruzamento da Rua do Carvalho com a Rua das Flores. Só… sentados. À espera. Como se estivessem à espera que o mundo se lembrasse deles.
Um inverno, começou a aparecer a Dona Margarida. Uns 80 e tal anos. Pequenina. Sempre com aquele casaco roxo desbotado. Sentava-se sozinha no banco, agarrada a uma carteira velha, a olhar para a rua vazia. A olhar mesmo. Como se quisesse que o autocarro aparecesse mais depressa. Ou talvez só quisesse que alguém a visse.
Na maioria dos dias, ninguém via. As pessoas passavam por ela como se fosse parte do banco. Até a própria família… bem, uma vez vi-a a chorar baixinho ao telefone. “Só queria ouvir a tua voz, querida… Sim, sim, sei que estás ocupada. Não te preocupes comigo.” Desligou, enxugou os olhos rápido, como se tivesse vergonha. O meu coração… partiu-se. Eu acenava quando chegava. “Bom dia, Dona Margarida!” Ela sorria, mas nunca com os olhos. Só por educação. Como se estivesse habituada a ser invisível.
Depois, numa terça-feira gelada, ela não apareceu. Nem no dia seguinte. A preocupação roía-me. Depois do turno, caminhei as três ruas até à casinha dela. Espreitei pela janela coberta de geada e vi-a caída numa cadeira, o cobertor desalinhado, parecendo terrivelmente sozinha. Bati à porta. Ela abriu, confusa, depois assustada. “Oh! Diogo! O motorista do autocarro! O que… o que se passa?” Só disse: “Não a vi na paragem. Queria saber se está bem, Dona Margarida.” Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. “Ninguém… ninguém veio,” sussurrou.
Isso mudou tudo. Na próxima vez que ela estava na paragem, não me limitei a acenar. Saí do autocarro antes de abrir a porta. “Hoje está frio, Dona Margarida! O cachecol está bem apertado?” perguntei, apontando para ele. Ela pestanejou, surpreendida. “Por… sim, Diogo. Obrigada por te lembrares.” Demorou 30 segundos. Mas o rosto dela iluminou-se. Como se lhe tivesse dado ouro.
Comecei a fazer o mesmo com os outros. A Dona Luísa, que trazia sempre a sua tricot. “Esse cachecol está lindo, Dona Luísa!” O Senhor Domingos, que andava devagar. “Temos tempo, Senhor Domingos! O autocarro não sai sem si.” Coisas pequenas. Nomes. Vê-los.
Depois, aconteceu algo incrível. Outras pessoas começaram a fazer o mesmo. Uma jovem com um bebé? Sorria para a Dona Margarida. “Adoro o seu casaco roxo, senhora. É tão alegre.” Um adolescente com auscultadores? Tirou um. “Precisa de ajuda com aquela saca, Dona Luísa?” Numa manhã de neve, vi o Senhor Domingos a ajudar a Dona Margarida a tirar a neve do banco antes de se sentar. Nada de especial. Só… humanos.
Não era sobre comida ou resolver problemas. Era sobre ver. Ver-se mesmo. Como se importássemos. Só porque sim.
A Dona Margarida faleceu na primavera passada. Em paz, disse-me a filha (que finalmente começou a visitá-la mais). No velório, adivinha quem estava lá? Não só a família. Eu. A Dona Luísa. O Senhor Domingos. A jovem mãe. Até aquele adolescente. Não éramos família, mas éramos as suas pessoas. As pessoas da paragem.
Agora, o Autocarro 14 é diferente. As pessoas falam. Perguntam como estás a sério. Guardam lugares para quem anda devagar. Partilham guarda-chuvas. Não é barulhento ou especial. Só… mais bondoso. Mais quente.
Sou só um motorista de autocarro. Mas aprendi uma coisa: às vezes, o mais poderoso que podes dar a alguém não é dinheiro ou comida. É olhá-la nos olhos, dizer o seu nome, e fazê-la sentir que… não foi esquecida. Aquela pequena faísca? Espalha-se. Espalha-se mesmo.
Da próxima vez que vires alguém sentado sozinho — numa paragem, numa loja, até na tua rua, diz só olá. Diz o nome dela, se souberes. Não custa nada. Mas para alguém que se sente invisível? Pode ser a luz que esperava. Experimenta. Vê o que nasce.