Estava na varanda a beber um café morno quando o carro da polícia parou do outro lado da rua. Estacionou mesmo em frente à casa da Dona Liliana—aquela com as persianas descascadas e o letreiro de “NÃO PERTURBE” mais velho do que eu.
Pensei que fosse por causa da queixa do barulho do fim de semana passado, ou talvez porque o neto dela, o David, finalmente tinha sido apanhado por ouvir aquela música estridente às 3 da manhã. Mas então o agente saiu—calmo, sereno, o tipo de pessoa que não precisava de levantar a voz para resolver as coisas.
O que não esperava era que ele passasse direto pela casa… e se ajoelhasse ao lado dos caixotes do lixo.
Esforcei os olhos. Foi então que vi um pequeno movimento—um cachorrinho cor de mel, só costelas e pernas trêmulas, encolhido entre os caixotes como se estivesse escondido ali há dias.
O agente não hesitou. Pegou no bichinho como se fosse de vidro, encostando-o ao peito. O cão simplesmente se derreteu nele. Sem latidos. Sem resistência. Um silêncio estranho e doloroso, como se finalmente tivesse parado de fugir.
E a parte mais invulgar? A expressão dele mudou por completo. Dava para ver a mudança. Ele já não estava ali por causa de uma ocorrência. Qualquer razão que o tivesse levado àquela rua… de repente, era a coisa menos importante que ali se passava.
Depois, ele olhou para cima—direto para mim.
“Sabia deste cão?”, perguntou, a voz baixa.
Abri a boca. Fechei. Porque tinha visto o cachorro. Dois dias antes. Mas não disse nada. Convenci-me de que ele encontraria o caminho de volta.
Ele aproximou-se de mim, ainda com o cãozinho no colo.
E quando chegou ao meu degrau, disse:
“Podia tê-lo salvo se tivesse dito alguma coisa.”
Aquilo atingiu-me em cheio. Não porque ele o tivesse dito com raiva, mas precisamente porque não o fez. A voz dele era calma. Apenas factos. Como se já tivesse visto centenas de versões da mesma cena e soubesse como a história costuma acabar.
“Eu… pensei que ele tivesse fugido. Ou que fosse de alguém”, murmurei. “Não imaginei que estivesse em apuros.”
O agente olhou para o cão, que já lambia o uniforme como se fosse a primeira coisa limpa que tocava numa semana. Depois, voltou a olhar para mim. “Dizemos a nós mesmos muitas coisas para evitar envolver-nos.”
Não tinha argumentos contra isso. Estava a meio de uma desculpa fraca quando a porta de rede da Dona Liliana rangue do outro lado da rua. Nem sequer saiu—apoiou-se na ombreira como se lhe custasse ficar de pé.
“Isto é por causa do David?”, gritou. “Porque se for, já lhe disse que não come nem migalhas se trouxer mais lixo para casa.”
O agente olhou para ela, depois para mim. “Disse que esta casa era da Dona Liliana?”
Acenei. “É ela. O David é o neto dela. Vive com ela de vez em quando.”
Ele não pareceu impressionado.
“Obrigado”, disse, e atravessou a rua.
Observei enquanto ele equilibrava o cão num braço e batia à porta com o outro. Dona Liliana olhou para ele como se estivesse a avaliar um vendedor de aspiradores.
“Minha senhora”, disse ele, “sou o Agente Costa. Estou aqui devido a uma denúncia de negligência animal.”
Ela riu-se. Uma gargalhada seca, como se ele tivesse contado uma piada.
“Negligência? Esse monte de ossos? Nem sequer é meu. O David trouxe-o para casa bêbado na semana passada e esqueceu-se dele. Disse-lhe para se livrar dele.”
Não estava perto o suficiente para ouvir o resto, mas pelo jeito do Agente Costa, a conversa não estava a correr bem. Não gritou. Não levantou a voz. Apenas acenou, fez mais algumas perguntas e depois virou-se e regressou ao carro—ainda com o cachorro ao colo.
Devia ter acabado ali.
Mas não acabou.
Na manhã seguinte, encontrei um bilhete na minha caixa de correio.
“Obrigado por, desta vez, não ter desviado o olhar. —Costa.”
Não havia morada de retorno. Nem número de telefone. Só aquilo e uma pequena foto do cachorro enrolado numa cama para cães. Já parecia mais limpo. Mais feliz.
E eu… bem, não consegui parar de pensar nisso.
Aquela criaturinha tinha estado ali, no beco atrás da minha vedação. Ouvira-o gemer. Pensei em verificar. Não o fiz. Era mais fácil não saber.
Mas agora sabia. E não conseguia deixar de saber.
Três dias depois, vi o Costa outra vez.
Desta vez, não estava fardado. Vestia jeans e uma camisa de flanela desbotada, na fila do mercado municipal, com um saco de pêssegos numa mão e uma trela na outra. O cachorro—limpo, com uma coleira ajustada ao pescoço—farejava um cesto de batatas como se nunca tivesse visto o mundo antes.
Toquei-lhe no ombro.
“Olá”, disse. “Cão bonito.”
Ele virou-se, surpreendido, e depois sorriu.
“Tu outra vez”, disse. “Ainda bem que vieste falar comigo.”
Encolhi os ombros. “Tenho pensado nele. No que disseste.”
O Costa não se vangloriou. Não disse “eu avisei”. Apenas acenou.
“Queres segurá-lo?”, perguntou, oferecendo a trela.
Não hesitei.
O cachorro saltou assim que me agachei. A linguinha dele lambiscou o meu queixo, a cauda a abanar tão rápido que quase não se via. Não conseguia acreditar que fosse o mesmo bichinho frágil que estava atrás dos caixotes.
“Como se chama?”, perguntei.
“Sortudo”, respondeu o Costa. “Porque, sinceramente, estava a uma hora de morrer de frio quando o encontrei.”
Engoli em seco. Aquele aperto no peito voltou.
“Vais ficar com ele?”, perguntei.
O Costa desviou o olhar por um instante. “Queria. Mas faço turnos longos. Fica sozinho em casa. Ele precisa de mais do que isso.”
Não o disse diretamente, mas dava para perceber a pergunta por trás das palavras.
“Talvez eu possa ajudar”, disse, sem pensar muito.
O sorriso dele alargou-se. “A sério?”
“Sim”, respondi. “Talvez ele possa dividir o tempo entre nós.”
Começámos uma rotina depois disso.
De manhã, o Sortudo ficava comigo. Dava-lhe de comer, passeava-o, deixava-o dormir na varanda enquanto eu trabalhava. O Costa buscava-o à tarde, antes do turno. Aos fins de semana, íamos todos ao parque juntos.
Era estranho como aquilo rapidamente se tornou normal.
Ainda mais estranho como comecei a ansiar por isso.
Num sábado, o Costa perguntou se eu queria acompanhá-lo numa ronda comunitária. Só para sentar no carro, ver como era o trabalho. Disse que sim.
Passámos por bairros aos quais eu nunca prestara atenção. Ele mostrou-me como falava com crianças que se juntavam à porta das lojas, como fazia perguntas em vez de ameaças.
“Este trabalho… não é só parar más pessoas”, disse ele. “É ver o que as pessoas têm demasiado medo ou cansaço para dizer em voz alta.”
Isso ficou comigo.
Especialmente quando passámos por um prédio pequeno com as janelas tapadas e duasE naquele momento, percebi que às vezes basta um pequeno gesto para mudar uma vida—e a nossa própria história para sempre.