O relógio de parede na entrada de mármore marcava duas e meia quando o Mercedes preto de Ricardo Mendes subiu silenciosamente o longo caminho circular da sua mansão no bairro de Alfama, em Lisboa.
Ele não devia estar em casa ainda. A reunião de diretoria terminara mais cedo, e por capricho, decidira surpreender a filha, Leonor. Ela tinha apenas seis anos, inteligente e meiga, com um par de muletas cor-de-rosa decoradas com autocolantes de borboletas que orgulhosamente chamava de “asas mágicas”.
Normalmente, quando ele chegava sem avisar, ela vinha saltitando com aquele sorriso radiante que lhe derretia o coração. Mas naquele dia — não havia risadas, nem passinhos, nenhuma voz alegre a gritar “Pai!”
Em vez disso, ouviu um som que lhe gelou o sangue.
O choro de uma criança.
Não um resmungo suave ou um lamúrio de birra. Era algo mais profundo, mais cru. O choro do medo.
E então veio outro som — cortante, frio e implacável. A voz de uma mulher.
“Estúpida, aleijada incompetente! Olha o que fizeste! Era um tapete persa que valia mais do que a tua miserável existência!”
Ricardo parou de repente, a mão ainda na maçaneta.
A voz era de Matilde — sua esposa.
Casara-se com ela dois anos antes, esperando que trouxesse calor de volta ao lar destruído após a morte da sua primeira mulher, Beatriz, vítima de cancro. Beatriz fora o amor da sua vida, e quando partira, Leonor tinha apenas quatro anos — frágil, com o coração partido, e desesperada por um amor de mãe.
Matilde parecera perfeita — elegante, bem-educada, inteligente. Dizia todas as palavras certas. Representava o papel.
Até àquele dia.
De dentro, veio a voz trémula da sua filha:
“Por favor, Mãe Matilde, não foi por querer! Só queria água… as minhas muletas escorregaram…”
Depois — um baque.
Um suspiro.
E silêncio.
Algo dentro de Ricardo se rompeu.
Abriu a porta de um só golpe.
A imagem que o saudou ficaria para sempre gravada na sua memória.
A sala de estar — normalmente impecável — estava em desordem. Um copo partido jazia no tapete, a água a espalhar-se como uma mancha de culpa. E no meio de tudo, Leonor estava sentada no chão, agarrada ao seu ursinho de pelúcia, os ombros a tremer de soluços. As muletas cor-de-rosa estavam deitadas ao lado.
De pé sobre ela, Matilde — radiante e perfeita como sempre, o vestido de marca intocado pelo caos.
Só o rosto a traía — distorcido em desdém.
“Matilde!” A voz de Ricardo ecoou pela casa, tão alta que os copos de cristal no bar estremeceram.
“Que raio se passa aqui?!”
Ela virou-se, surpreendida. Por uma fração de segundo, Ricardo viu algo cintilar nos seus olhos — não medo, não culpa, mas algo muito mais sombrio. Ódio.
Depois, como se nada tivesse acontecido, alisou o cabelo e respondeu com aquela calma falsa e melosa que um dia o enganara.
“Oh, querido, chegaste mais cedo! Não é nada. A Leonor teve um acidente com a bebida, só isso. Estava só a ensiná-la a ter mais cuidado com as coisas valiosas.”
Ricardo não disse nada. Olhou para a filha — o cabelo louro em desalinho, as faces vermelhas de lágrimas. Os olhos azuis — os olhos de Beatriz — estavam arregalados de confusão e dor.
Ajoelhou-se ao lado dela, pegando-lhe nas mãos trémulas.
E foi então que viu — marcas vermelhas finas a cercar os seus pulsos pequenos.
Alguém a agarrou. Com força.
“Quem te fez isto?”, sussurrou.
Os lábios de Leonor tremeram. “Pai… por favor, não fiques zangado. Eu só… só queria água…”
Sentiu o peito apertar. “Ela magoou-te?”
O silêncio dela foi resposta suficiente.
Quando Ricardo se virou para Matilde, a voz já não era alta — mas tão fria que parecia congelar o ar.
“Faz as malas. Tens uma hora.”
O rosto dela empalideceu. “O quê? Não podes estar a falar a sério! Por causa desta dramatização? Ricardo, ela está a manipular-te! Está sempre a chorar, sempre a fazer-se de vítima. Não podes deixar que uma criança mimada te afaste da tua mulher.”
Ele ergueu-se devagar, levantando Leonor ao colo. “A minha filha não é mimada. E tu… nunca mais lhe porás as mãos em cima.”
Enquanto subia as escadas, o tom de Matilde mudou — de indignada para venenosa.
“Vais arrepender-te disto, Ricardo Mendes. Não fazes ideia do que estás a perder. Essa rapariga vai arruinar a tua vida — tal como a mãe quase arruinou a tua.”
As palavras dela ecoaram atrás dele como uma maldição.
No andar de cima, Leonor enterrou o rosto no seu ombro. “Pai”, sussurrou, “porque é que a Mãe Matilde me odeia? Fiquei com ela zangada porque eu sou… diferente?”
A garganta de Ricardo apertou. “Não, querida. Não fizeste nada de mal. És perfeita — exatamente como és.”
Ela acenou com a cabeça, débil, e abraçou-o com mais força.
E naquele momento, ele fez um voto silencioso.
Quaisquer segredos que Matilde escondesse — qualquer escuridão por trás da sua máscara polida — ele iria descobrir. E garantiria que ninguém magoaria a sua filha outra vez.
Três horas depois, a mansão estava em silêncio.
Matilde tinha ido embora — pelo menos por agora.
Ricardo estava sentado sozinho no seu escritório, a luz tremeluzente da lareira projetando sombras nas paredes. Em cima da mesa, havia uma moldura com uma única fotografia: Beatriz, a sorrir suavemente, com a pequena Leonor nos braços.
Durante anos, ele construíra impérios, conquistara mercados, ganhara milhões. Mas nada — absolutamente nada — se comparava ao peso daquele momento, quando percebeu que falhara em proteger a única pessoa que realmente importava.
Pegou no telefone e ligou ao chefe de segurança.
“João”, disse calmamente. “Preciso de tudo sobre Matilde Mendes. O passado dela, finanças, contactos — cada movimento que fez desde o dia em que nos conhecemos. Não importa o custo.”
Houve uma pausa, depois a voz calma de João respondeu:
“Entendido, senhor. Começamos já.”
Ricardo desligou e recostou-se, fitando o lume. As chamas dançavam como memórias vivas — o riso da mulher, os primeiros passos da filha, a frágil esperança que um dia depositara em Matilde.
Agora, só restava determinação.
Ele descobriria a verdade.
E quando o fizesse, garantiria que ninguém ameaçaria a sua família outra vez.
Na manhã seguinte, a luz do sol entrava pelas janelas. Leonor estava acordada, sentada na cama com uma caixa de lápis de cor.
Quando Ricardo entrou, ela sorriu timidamente e mostrou-lhe o desenho: uma casa, um sol amarelo enorme e duas figuras de traços a dar as mãos.
“Somos nós?”, perguntou ele.
Ela acenou. “Só nós. Mais ninguém.”
O coração doeu-lhe, mas ele sorriu. “Está perfeito.”
“Pai”, sussurrou elaEle abraçou-a mais uma vez, sabendo que, mesmo nas tempestades mais sombrias, o amor de um pai seria sempre o porto seguro onde ela encontraria paz.





