No início, pensei que fosse uma fase.
De vez em quando, encontrava a Narcisa—a galinha gorda e mandona da vizinha—no nosso quintal, mesmo sem termos galinhas. A minha filha Leonor estava sempre por perto, abraçando-a como se fosse um bicho de pelúcia, sussurrando segredos nas suas penas.
Levava a Narcisa de volta à casa da dona Amélia, a velhinha do lado, sempre a pedir desculpa. Ela respondia com uma risada seca: “A tua menina ama com força. Não há mal nisso.”
Mas uma tarde, apanhei a Leonor a levar a Narcisa outra vez. Desta vez, tinha um cobertor e um pacote de sumo numa carriquinha, como se preparasse uma viagem.
Ajoelhei-me e perguntei: “Meu amor, por que é que levas a Narcisa outra vez?”
Ela olhou para mim, os olhos cheios de lágrimas, e murmurou: “Porque a dona Amélia disse que a vai pôr a dormir. Como fizemos com o Avô. E a Narcisa nem fez nada de mal.”
O meu coração apertou.
Não soube o que dizer, mas caminhámos até ao lado. A dona Amélia estava a podar as roseiras quando nos viu. Antes que eu falasse, a Leonor soltou: “Não pode levá-la! Eu prometi que ela estava segura.”
A dona Amélia suspirou. Fundo e cansado.
Depois, disse algo que me fez olhar duas vezes para ela e para a galinha nos braços da Leonor.
“A Narcisa não é uma galinha qualquer. Era do meu marido, o Artur. Ele trouxe-a no ano antes de partir.”
Olhei para o seu rosto, a sério. As rugas ao redor da boca não eram apenas de idade—guardavam uma dor silenciosa, daquelas que ficam connosco à noite, quando todos dormem.
“Ela é a última coisa que me resta dele,” disse, quase num sussurro. “Mas já está velha. Não põe ovos. Come muito. O veterinário disse que tem um tumor. Não tenho dinheiro para outra cirurgia.”
Pisquei os olhos. A ideia de sacrificar um animal por falta de dinheiro pesou-me no peito. Olhei para a Leonor, que acariciava a Narcisa como se quisesse confortar a ave e a si mesma.
“A Leonor acha que a pode salvar,” disse suavemente.
A dona Amélia sorriu, triste. “Essa menina tem o coração de uma heroína. Mas corações não pagam contas.”
Nessa noite, deitei a Leonor na cama. Ela perguntou: “Não podemos ajudar a Narcisa, Mãe?”
Contei-lhe a verdade. Que a vida nem sempre é simples. Que às vezes temos de escolher dificuldades. Mas ela não chorou. Apenas acenou e disse: “Então eu vou simplificar.”
Não percebi até uns dias depois.
A Leonor montou uma banca de limonada.
Nada incomum—as crianças fazem-no sempre. Mas ela não cobrava cinquenta cêntimos. Pedia doações “para salvar a Narcisa”. Até fez um cartaz com um coração desenhado em volta da galinha.
E as pessoas apareceram.
Primeiro os vizinhos. Depois, alguém partilhou uma foto na internet. De repente, havia carros de outras cidades a parar para comprar limonada à minha filha de olhos grandes e coração maior.
Em uma semana, juntou mais de trezentos euros.
Nem eu nem a dona Amélia conseguíamos acreditar.
Quando lhe entreguei o envelope, ela ficou a olhar para ele, muda. “O que é isto?” perguntou, sabendo bem a resposta.
“É para a Narcisa,” respondi. “A Leonor quer ajudar.”
A dona Amélia sentou-se nos degraus da varanda. As lágrimas correram-lhe pelo rosto, sem as enxugar. “O Artur teria adorado essa menina,” murmurou.
A Narcisa foi operada na terça-feira seguinte.
O tumor era benigno.
O veterinário disse que, mesmo velha e rabugenta, ainda tinha uns bons anos pela frente. A Leonor estava nas nuvens. Fez uma medalha de papel e colou-a no galinheiro: “Galinha Mais Corajosa do Mundo”, dizia.
Mas a vida prega-nos partidas.
Dois meses depois, a dona Amélia caiu e partiu o quadril.
Ninguém teria sabido se a Leonor não tivesse ido dar-lhe comida antes da escola. Encontrou-a deitada no jardim, quase inconsciente.
A ambulância chegou a tempo.
Os médicos disseram que mais uma hora e poderia ter sido diferente. Ficou no hospital, depois num centro de reabilitação. A Leonor visitava-a duas vezes por semana, levando desenhos, notícias da Narcisa e às vezes vídeos.
Um dia, a dona Amélia perguntou-me: “Importas-te de ficar com a Narcisa? Não vou voltar tão cedo para casa.”
Hesitei. Não por não querer, mas porque entendi o que aquilo significava. Era a sua forma de deixar ir.
Mudámos o galinheiro da Narcisa para o nosso quintal. A Leonor decorou-o com fitas e chamou-lhe “O Castelo da Narcisa”.
E nesse verão, aconteceu algo extraordinário.
Um dos ovos antigos da Narcisa, esquecido num canto do galinheiro abandonado, tinha sobrevivido. Eclodiu. Um pintainho desajeitado surgiu numa manhã, quando eu ajudava a sobrinha da dona Amélia a arrumar as coisas.
Chamámos-lhe Neco.
A Leonor disse que era um milagre. Talvez tivesse razão.
A Narcisa cuidou dele como se sempre tivesse sido mãe. E ver a Leonor com os dois—a ensinar, a alimentar, a contar-lhes segredos—fez-me perceber que isto nunca foi sobre uma galinha.
Foi sobre cuidar quando ninguém mais o faz.
Sobre escolher bondade em vez de comodismo.
Sobre uma menina que não via uma galinha velha, mas uma amiga que ainda tinha vida para viver.
A dona Amélia não voltou para a casa dela. A sobrinha vendeu-a na primavera seguinte, mas não sem antes instalar uma rampa e levantar os canteiros, caso ela um dia quisesse visitar.
Ela voltou uma vez, no outono, com uma bengala e um sorriso frágil.
Sentou-se junto ao Castelo da Narcisa e viu a Leonor a brincar com o Neco na relva.
“Ela também me salvou, sabes,” sussurrou. “A tua menina. Lembrou-me como é o amor.”
Acenei. Não havia mais nada a dizer.
Agora, quando vejo a Narcisa a caminhar pelo quintal ou oiço o riso da Leonor pela janela, lembro-me de como tudo começou—com uma menina que nunca aceitou um “não” como resposta.
E agradeço que assim tenha sido.
Porque às vezes, o coração de uma criança vê o que os adultos esquecem—que toda a vida, por mais pequena, emplumada ou enrugada, merece uma oportunidade.
Então, o que achas? Já subestimaste o poder do amor de uma criança?