Depois de doze anos fardado — por desertos, selvas e postos esquecidos — o Sargento-Ajudante Rodrigo Marques voltou para casa e encontrou silêncio.
Nada de paradas. Nada de festas. Apenas o rangido da porta mosquiteira e o eco das suas botas no alpendre da casa herdada dos pais, algures no interior do Alentejo.
E ele gostava daquilo.
Precisava.
A guerra tinha-lhe levado mais do que o ombro esquerdo e metade do sono — levara-lhe também as pessoas. Amigos que nunca tiveram uma segunda chance. Irmãos de armas transformados em bandeiras dobradas. Rodrigo regressou com o coração assombrado e uma claudicação sobre a qual se recusava a falar.
Pensou que a cura viria devagar.
Mas então… os presentes começaram.
Começou com uma caixinha de bolinhos de mel — ainda quentes — deixada na varanda numa manhã.
Sem bilhete. Sem nome.
Apenas doçura e silêncio.
Uma semana depois: margaridas frescas num frasco de vidro.
Depois, uma carta escrita à mão num papel com flores.
*”Tu és visto. Tu és lembrado. E és mais do que as tuas cicatrizes.”*
Rodrigo leu-a duas vezes.
Depois dobrou-a e guardou-a na gaveta da cozinha, sem saber o que fazer com o calor repentino no peito.
A cada dias, um novo bilhete ou prenda aparecia. Pão de banana. Um cachecol. Um pequeno livro de salmos com versos sublinhados a cor-de-rosa.
Cada mensagem era diferente.
Mas sempre de esperança.
Sempre gentil.
Sempre anónima.
Perguntou pela vila.
A empregada do café encolheu os ombros. *”Não fui eu, querido.”*
A florista sorriu. *”Fazemos entregas, mas não a ti. Deve ser alguém da terra.”*
Até o carteiro franziu a testa. *”Não é pelos CTT, amigo.”*
Naquela noite, a curiosidade venceu-o.
Colocou uma cadeira junto à janela, apagou as luzes e esperou.
À meia-noite, quase adormecia.
Mas às duas e dezassete, um vulto moveu-se no alpendre.
Rodrigo abriu os olhos a tempo de ver uma figura pequena — encapuzada, esguia — a pisar suavemente o alpendre, deixar um embrulho em pano e afastar-se.
Levantou-se rápido, saiu a correr — calado, mas firme.
Mas quando abriu a porta…
A figura virou-se o suficiente ao luar para ele ver o seu rosto.
E tudo dentro de Rodrigo se partiu.
Era Beatriz Lopes.
A sua noiva.
Pelo menos, tinha sido — antes daquela última missão.
Antes da explosão, do coma.
Acordara três meses depois, desorientado num hospital, e disseram-lhe que Beatriz se mudara, incapaz de lidar, incontactável.
Achou que ela partira para sempre. Que seguira em frente.
Mas agora, diante dele, com lágrimas nos olhos, ela sussurrou: *”Não sabia como voltar. Não sabia se ainda me querias.”*
Rodrigo não conseguiu falar.
Não conseguiu respirar.
Desceu os degraus e estendeu a mão — não como um militar, mas como um homem finalmente a sair do nevoeiro.
Ela trazia o último presente — uma foto deles, anos atrás, sentados sob o salgueiro junto ao rio, a cabeça dela no seu ombro.
*”Nunca deixei de te amar,”* disse. *”Só não sabia como enfrentar a pessoa que voltou.”*
Ele caiu de joelhos diante dela — não de dor, não de ferimento, mas do peso de tudo que carregara sozinho… agora aliviado.
Lágrimas silenciosas corriam-lhe pelo rosto.
Beatriz ajoelhou-se ao seu lado.
E, pela primeira vez em anos, ele permitiu-se ser abraçado.
Naquela noite, sentaram-se ombro a ombro no alpendre enquanto o sol nascia, dois cafés fumegantes entre eles, o último bilhete na mão de Rodrigo:
*”Até as coisas partidas podem tornar-se belas outra vez. Esperei até estares pronto.”*
E, lá bem dentro, onde antes viviam tiros e fantasmas, algo floresceu.