“Toca-lhe outra vez… e vais ter que lidar comigo.”
A voz do velho era áspera, trémula não de medo, mas do esforço de conter algo muito mais profundo, muito mais antigo.
Um motard idoso ajoelha-se para proteger uma menina perdida e o seu cão assustado numa viela cheia de gente, desencadeando uma série de eventos que parecem simples à superfície, mas escondem uma verdade dolorosa o suficiente para calar uma rua inteira.
Era final da tarde numa pequena vila portuguesa. O dourado do crepúsculo deslizava sobre paredes de tijolo rachadas, transformando a viela estreita num corredor de luz que se esvaía. O motard—um homem português, branco, nos seus 60 e poucos anos, barba grisalha, jaqueta de couro preta gasta, botas pesadas—tinha acabado de sair da sua velha Harley. Uma rajada de vento agitou o lenço vermelho desbotado em volta do pescoço.
Foi então que a viu.
Uma menina, talvez com oito anos, cabelos louros encaracolados e em desalinho, faces sujas de terra, agarrando um cachorro castanho trémulo ao peito. Um círculo de adultos rodeava-a—metade irritados, metade indiferentes, nenhum disposto a baixar-se.
A menina soluçou:
“Por favor… não deixem que lhe façam mal.”
O motard não perguntou porquê.
Apenas tirou a jaqueta e envolveu a criança e o cão com ela.
Depois, ergueu o olhar.
E no instante em que os seus olhos encontraram os da multidão—as vozes calaram-se.
O nome do motard era João Almeida, e os seus olhos—frios como aço, cansados como os de um homem que perdeu demasiado—percorreram lentamente os rostos à sua frente.
Apertou o abraço em volta da menina, puxando-a para mais perto, como se soltá-la por um segundo significasse que algo terrível podia acontecer.
Um homem na multidão falou por fim, irritado:
“A miúda partiu coisas na loja. O cão correu descontrolado. Alguém devia chamar a polícia.”
João ignorou-o.
Em vez disso, ajoelhou-se ao lado da menina e perguntou em voz suave:
“Como te chamas?”
“…Inês.”
A voz dela era frágil, quase impercetível.
“E o nome dele?” João perguntou, acariciando o cachorro trémulo.
“Bobi… ele tem medo de barulhos altos. Eu… não sabia para onde ir…”
O cão tremia tão violentamente que João o sentia através da jaqueta de couro. Inês não estava muito melhor—as suas mãozinhas estavam geladas, os ombros a tremer.
João deu-lhe uma palmadinha nas costas, tranquilizador, e depois olhou diretamente para a multidão.
“A menina não partiu nada. O cão só está assustado. Então, o que querem? Vê-los congelar?”
Uma mulher murmurou:
“Só queremos ordem…”
João soltou uma risada sem humor.
“Já vi o que chamam de ‘ordem’. Roubou-me mais do que algum dia imaginarão.”
Algumas pessoas trocaram olhares desconfortáveis.
João levantou Inês. Mas quando se virou para sair, o empregado da loja—um homem português, branco, nos seus 30 e poucos, feição severa e impaciente—avançou:
“Espera! Essa miúda fugiu do centro de acolhimento. Não podes simplesmente levá-la!”
Inês encolheu-se, enterrando o rosto no peito de João. Bobi choramingou.
João baixou o tom:
“Tens a certeza disso?”
“Ela desapareceu do centro,” o homem afirmou. “Tenho de a deter.”
João agachou-se ao nível de Inês.
“É verdade?”
Inês abanou a cabeça, as lágrimas a rebentarem.
“Não quero voltar. Gritavam comigo… bateram no Bobi porque ele ladrou…”
O peito de João apertou-se.
Uma cicatriz há muito enterrada pulsou de novo.
Viu, naquela menina, o fantasma do seu próprio filho—Martim, dez anos—que lhe foi tirado quando João perdeu a custódia nos anos mais sombrios da sua vida. Martim tinha-lhe sussurrado as mesmas palavras:
“Gritam comigo. Odeiam-me. Pai… quero ir para casa…”
João lembrava-se de correr para o ir buscar.
Lembrava-se de chegar tarde demais.
O acidente.
O telefonema.
O mundo a desabar.
Vivera com essa culpa desde então.
E agora, diante dele, estava outra criança assustada, a implorar para não ser abandonada.
João levantou-se devagar, com Inês nos braços, os olhos a brilhar com algo intenso.
“Ela vem comigo.”
O empregado gritou: “Não tens esse direito!”
João respondeu com uma frase que silenciou a viela inteira:
“Se tiver de passar o resto da vida a pagar por salvar estes dois… assim será.”
A multidão congelou.
Então, uma senhora idosa, de cabelos brancos, avançou, apoiada numa bengala.
“Eu vi esta menina sentada aqui desde de manhã. Ninguém lhe deu comida. Ninguém se importou. O motard tem razão.”
Um jovem assentiu.
Depois uma mulher de meia-idade.
Depois um pai com uma criança ao colo.
Um a um, a multidão começou a afastar-se.
João apertou a jaqueta em volta de Inês e Bobi e atravessou o mar de gente que se abria à sua frente.
“Vais… deixar-me?” Inês choramingou.
João abanou a cabeça.
“Já deixei uma criança para trás uma vez. Não vou cometer esse erro outra vez.”
Inês abraçou-o com força. Bobi lambeu a mão de João, como se o estivesse a agradecer.
Estavam quase a sair da viela quando uma voz familiar o chamou:
“João… para.”
João virou-se.
Um homem português, branco, perto dos 60, com um colete policial, avançou—Chefe Sousa, o chefe da polícia local e velho amigo de João.
Sousa olhou para Inês, depois para João.
“Sabes que não quero fazer isto… mas legalmente—”
João interrompeu-o.
“Pergunta-lhe onde ela quer ir.”
Sousa ajoelhou-se.
“Inês, queres voltar para o centro?”
Ela abanou a cabeça violentamente e agarrou-se a Bobi.
Sousa fitou João por um longo momento.
Depois suspirou.
“Tu sempre escolhes o caminho mais difícil… mas às vezes o certo.”
Virou-se para a multidão.
“Vou permitir que ele a leve—a não ser que alguém se oponha.”
Ninguém falou.
Ninguém se mexeu.
Ninguém ousou.
Sousa acenou a João.
“Leva-os para minha casa. Falaremos mais lá. Mas cuidado, João. Isto é delicado.”
João sorriu ligeiramente, algo raro.
Colocou Inês na Harley, embrulhou-a e a Bobi na sua jaqueta e ligou o motor.
A rua inteira ficou em silêncio.
E todos se afastaram enquanto o motard partia.
A casa de Sousa era acolhedora, iluminada por candeeiros amarelos que suavizavam cada canto. Inês enroscou-se no sofá velho, com Bobi seguro debaixo do braço.
Sousa e João sentaram-se frente a frente—dois homens marcados pela dor, pelo arrependimento e porJoão abraçou Inês e Bobi, sabendo que, finalmente, tinha encontrado o que há muito tempo pensara perdido—um lar cheio de amor e uma segunda chance para ser a família que todos precisavam.





