O sol da tarde mergulhava sobre a pequena vila, tingindo o céu com riscas de laranja e roxo. O pó pairou no ar como uma névoa dourada, e folhas secas de sobreiro dançavam sobre a calçada. Gustavo Mendes caminhava devagar, não como um soldado, mas como um homem temeroso do que poderia encontrar. Cada passo das suas botas ecoou na varanda da casa número 42. As costas curvadas sob um peso mais pesado que a sua mochila militar, a mão calejada mal segurava a alça. O portão, a fachada familiar, os sinos de vento sob o beiral—tudo estava exatamente como deixara, mas o lugar parecia vazio, como uma casca sem vida. O riso da filha, o coração da casa—desaparecidos. A porta da frente, entreaberta, era um convite estranho. Ele empurrou-a; as dobradiças gemeram.
Dentro, o cheiro de desinfetante cortava o ar. O sofá e a estante da TV estavam impecáveis, sem pó. Até o vaso de flores amarelas artificiais desafiava o tempo. Mas algo estava errado. Os sapatinhos à porta sumiram, o casaco rosa desaparecera do encosto da cadeira, os desenhos a giz já não estavam no frigorífico. Cada traço de Leonor fora apagado. O peito de Gustavo apertou. Ao avançar para o corredor, ouviu passos cautelosos vindos da cozinha—não a corrida brincalhona da filha, mas um andar calculado e desconhecido.
Ana Fialho apareceu na soleira, enxugando as mãos num avental impecável, os cachos repousados sobre um vestido azul. O rosto maquilado, os lábios pintados de um tom que ele nunca vira. Sorriu levemente. “Então, voltaste. Não esperava tão cedo. Porque não ligaste?” A voz era calma, ensaiada, vazia de alegria.
Gustavo ignorou as palavras. “Onde está a Leonor, Ana?”
Um brilho de surpresa nos olhos dela, rapidamente controlado. Sentou-se à mesa como se quisesse desviar a urgência. “Está com a minha prima Carminda. Tem sido… difícil. Rebelde. Precisei de uma pausa.”
Ele fitou-a. “Que prima? Nunca tiveste uma Carminda.”
“Tenho—de Montalegre,” disse, franzindo os lábios. “Achei que a distância ajudaria.”
As palavras soaram falsas. Na janela dos fundos, o balanço de madeira que construíra para Leonor desaparecera. O quintal, vazio, bem aparado como um jardim abandonado. Naquela noite, quase não dormiu. De manhã, a suspeita devorava-o. Na cozinha, um único desenho permanecia no frigorífico—o coração torto de giz de Leonor, feito anos atrás. Tocou-o, sentindo a dor no peito. Apertou a mochila e saiu.
As ruas despertavam: cheiro de lenha queimada, pedra molhada, massa fresca. Gustavo caminhava decidido, vasculhando cada esquina. No mercado, o velho padeiro, o senhor Domingos, cumprimentou-o calorosamente—mas admitiu que não via Leonor desde antes do Natal.
Uma voz interrompeu—o senhor Evaristo, o varredor. “Ouvi chorar há duas noites, atrás da padaria velha, perto do lixo.” O tom acelerou o pulso de Gustavo.
Correu. Passou pelas grades enferrujadas, por uma fábrica abandonada, entrando num beco escuro, fedendo a podridão. Um choro fraco vinha da escuridão. Seguiu-o até um caixote, e lá estava ela—encolhida, trêmula, o cabelo emaranhado, a roupa rasgada e suja. O rosto machucado ergueu-se. “Pai… estou com frio e fome.”
Não falou. Levantou-a com cuidado, apertando-a como se pudesse sumir. Era leve como uma pena, a tremer. Levou-a direto ao posto médico.
A enfermeira, Maria, surpreendeu-se e chamou ajuda. A Dra. Isabel examinou Leonor, tirando-lhe as roupas rasgadas. Hematomas, cicatrizes antigas, queimaduras—sinais de maus-tratos prolongados. “Esta criança foi maltratada há muito tempo,” murmurou. Leonor apertava um gancho de cabelo desgastado. Quando Gustavo a encorajou a falar, as palavras doeram: “Ela trancou-me no quarto dos fundos… bateu-me com um cabo.”
O gancho caiu, revelando um bilhete numa letra infantil: Eu amo a minha mãe e o meu pai. Sou uma princesa boa.
No corredor, Gustavo ouviu Isabel e Maria conversarem. Semanas atrás, Ana tentara denunciar o desaparecimento da filha sem provas de parentesco. Gustavo cerrou os dentes. Não voltara só para abraçar a filha—voltara para recuperar tudo o que lhe roubaram.
Foi ao antigo camarada, o major João Ribeiro. No escritório, Gustavo expôs tudo: as mentiras, os maus-tratos, o bilhete. O rosto de João escureceu. “Ela vai pagar. Tens a minha lealdade.”
Naquela noite, Gustavo invadiu o antigo escritório. Documentos escondidos confirmaram seus piores temores: uma certidão de óbito falsa em seu nome, procuração transferindo todos os bens para Ana, e papéis matriculando Leonor no “Centro Alvorada”, uma fachada para tráfico infantil. João reconheceu Ana de um caso antigo—sob outro nome, Cláudia Teixeira, ligada a mortes suspeitas.
Levaram as provas ao tabelião Diogo, que viu a gravidade. “Ela está apagando-te legalmente, Gustavo. Se tiver êxito, venderá tudo.” Juntos, prepararam uma armadilha. Gustavo fingiria desistir—voltaria para a unidade, cedendo os bens—para que ela se revelasse.
Esconderam Leonor num abrigo seguro, Cantinho do Sol, onde conheceu outras crianças visadas por Ana. Enquanto isso, sob vigilância, Ana entrou num cartório dias depois, elegante, documentos na mão. Não viu chegar. Gustavo apareceu de uniforme, fitando-a. A confiança dela virou cinzas.
“Pensaste que não voltaria,” disse, calmo. “Tentaste matar a vida da minha filha e roubar-lhe o futuro.”
Os agentes avançaram. João mostrou a certidão falsa, as assinaturas, a ligação ao centro. Ana gritou negações, tentou fugir. As algemas fecharam-se.
Semanas depois, no tribunal, provas e testemunhos—inclusive de outra vítima—enterraE, anos mais tarde, quando o vento soprava suave sobre o telhado da **Casa Leonor**, Gustavo olhava para a filha, agora crescida, e sabia que nenhuma sombra do passado poderia apagar a luz que ela carregava dentro de si.