Chamo-me Rui. Sou motorista do Autocarro 14 em Coimbra. Há 22 anos que faço o mesmo percurso. Vejo sempre as mesmas caras. Na maioria, rostos cansados. Especialmente os idosos que esperam na esquina da Rua do Carvalho com a Avenida das Flores. Apenas… sentados. À espera. Como se esperassem que o mundo se lembrasse deles.
Num inverno, começou a aparecer a Dona Isabel. Passava dos 80 anos. Pequenina. Sempre com aquele casaco roxo desbotado. Sentava-se sozinha no banco, apertando uma carteira gastinha, a olhar para a rua vazia. Não era um olhar distraído – era intenso. Como se quisesse que o autocarro chegasse mais depressa. Ou talvez só quisesse que alguém a visse.
Na maioria dos dias, ninguém a via. As pessoas passavam por ela como se fosse parte do banco. Até a própria família… Bem, uma vez, vi-a a chorar baixinho ao telefone. “Só queria ouvir a tua voz, querida… Sim, sim, sei que estás ocupada. Não te preocupes comigo.” Desligou, limpou os olhos rápido, como se tivesse vergonha. O meu coração apertou.
Eu acenava quando chegava. “Bom dia, Dona Isabel!” Ela sorria, mas o sorriso nunca chegava aos olhos. Apenas educado. Como se estivesse habituada a ser invisível.
Até que, numa terça-feira gelada, ela não apareceu. Nem no dia seguinte. A preocupação roía-me. Depois do turno, caminhei as três ruas até à sua casinha. Espreitei pela janela embaciada e vi-a descaída numa cadeira, o xaile desarrumado, parecendo terrivelmente sozinha. Bati à porta. Ela abriu, confusa, depois assustada. “Oh! Rui! O motorista! O… o que se passa?” Apenas respondi: “Não a vi no ponto. Queria confirmar que estava bem, Dona Isabel.” Os olhos encheram-se de lágrimas. “Ninguém… ninguém veio,” sussurrou.
Aquilo mudou tudo. Da próxima vez que ela estava no ponto, não me limitei a acenar. Saí do autocarro antes de abrir a porta. “Está um frio de rachar hoje, Dona Isabel! O cachecol está bem apertado?” perguntei, apontando para ele. Ela pestanejou, surpresa. “Ora… sim, Rui. Obrigada por te lembrares.” Foram 30 segundos. Mas o rosto dela iluminou-se. Como se eu lhe tivesse dado ouro.
Comecei a fazer o mesmo com os outros. A Dona Ana, que trazia sempre as suas malhas. “Esse cachecol está lindo, Dona Ana!” O Senhor Alberto, que caminhava devagar. “Tem tempo, Senhor Alberto! O autocarro não sai sem si.” Coisas pequenas. Nomes. Vê-los.
Então, algo maravilhoso aconteceu. Os outros começaram a fazer o mesmo. Uma jovem com um bebê sorria para a Dona Isabel. “Adoro o seu casaco roxo, senhora. É tão alegre.” Um rapaz de auscultadores tirava um lado. “Precisa de ajuda com essa sacola, Dona Ana?” Numa manhã de neve, vi o Senhor Alberto a ajudar a Dona Isabel a limpar a neve do banco antes de ela se sentar. Nada de especial. Apenas… humanos.
Não era sobre comida ou resolver problemas. Era sobre ver. Ver-se verdadeiramente. Como se importássemos. Só porque sim.
A Dona Isabel faleceu na primavera passada. Em paz, disse-me a filha (que finalmente começou a visitá-la mais). No seu pequeno velório, adivinhem quem estava lá? Não só a família. Eu. A Dona Ana. O Senhor Alberto. A jovem mãe. Até o rapaz dos auscultadores. Não éramos família, mas éramos as suas pessoas. As pessoas da paragem.
Agora, o Autocarro 14 é diferente. As pessoas conversam. Perguntam como estás a sério. Guardam lugares para quem anda devagar. Partilham guarda-chuvas. Não é barulhento, nem extraordinário. Apenas… mais bondoso. Mais quente.
Sou apenas um motorista. Mas aprendi algo: Às vezes, a coisa mais poderosa que podes dar a alguém não é dinheiro ou comida. É olhá-la nos olhos, dizer o seu nome, e fazê-la sentir… que não foi esquecida. Aquela pequena faísca? Ela contagia. De verdade.
Da próxima vez que vires alguém sentado sozinho – numa paragem, numa loja, até na tua própria rua, diz simplesmente “olá”. Usa o nome, se o souberes. Não custa nada. Mas, para alguém que se sente invisível, pode ser a luz que esperava há tanto tempo. Experimenta. E observa o que cresce.
Que esta história alcance mais corações…