Eles ainda dormem agora. Os três, amontoados sob aquela manta azul fina, como se fosse a coisa mais aconchegante do mundo. Observo seus peitos a subir e descer e finjo—por um instante—que isto é férias.
Armámos a tenda atrás de uma área de serviço, pouco depois da saída da cidade. Tecnicamente, não é permitido, mas está sossegado, e o segurança olhou para mim ontem com um ar que dizia que não nos ia expulsar. Por agora.
Disse aos miúdos que íamos acampar. “Só nós, os homens”, como se fosse uma aventura. Como se não tivesse vendido a minha aliança três dias antes para pagar gasolina e manteiga de amendoim.
A questão é… eles são pequenos demais para perceber a diferença. Acham divertido dormir em colchões de ar e comer cereais em copos de papel. Acham que sou corajoso. Como se tivesse um plano.
Mas a verdade é que tenho ligado para todos os abrigos daqui até Santarém e ninguém tem lugar para quatro. O último disse que talvez na terça-feira. Talvez.
A mãe deles foi-se embora há seis semanas. Disse que ia para casa da irmã. Deixou um bilhete e meio frasco de Ben-u-ron em cima da mesa. Desde então, não dei por ela.
Tenho aguentado, por pouco. Lavo-nos em estações de serviço. Invento histórias. Mantenho as rotinas da hora de dormir. Encosto-os à cama como se estivesse tudo bem.
Mas ontem à noite… o do meio, o Miguel, murmurou qualquer coisa a dormir. Disse: “Pai, gosto mais disto do que do motel.”
E aquilo partiu-me.
Porque ele tinha razão. E porque sei que esta noite pode ser a última em que consigo fingir.
Logo que acordem, tenho de lhes dizer algo. Algo que temo.
E quando comecei a abrir o fecho da tenda—
O Miguel mexeu-se. “Pai?”, sussurrou, esfregando os olhos. “Podemos ir ver os patos outra vez?”
Referia-se aos do lago perto da área de serviço. Tínhamos ido na noite anterior e ele rira mais do que ouvira em semanas. Forcei um sorriso.
“Sim, filho. Assim que os teus irmãos acordarem.”
Quando arrumámos as poucas coisas e lavámos os dentes no lavatório atrás do edifício, o sol já aquecia a relva. O mais novo, o Tomás, segurou a minha mão a cantarolar baixinho, enquanto o mais velho, o Carlos, chutava pedras e perguntava se íamos fazer uma caminhada hoje.
Estava prestes a dizer-lhes que não podíamos ficar mais uma noite quando a vi.
Uma mulher, talvez nos seus sessenta, aproximava-se com um saco de papel numa mão e uma garrafa térmica enorme na outra. Vestia uma camisa xadrez desgastada e tinha uma trança comprida nas costas. Pensei que ia perguntar se estávamos bem—ou pior, mandar-nos embora.
Em vez disso, sorriu e estendeu o saco.
“Bom dia”, disse. “Querem pequeno-almoço?”
Os miúdos acenderam-se antes que eu pudesse responder. Dentro do saco estavam bolinhos quentes e ovos cozidos, e a térmica tinha cacau. Não café—cacau. Para eles.
“Chamo-me Joana”, disse, sentando-se no passeio connosco. “Já os vi aqui há algumas noites.”
Acenei, sem saber o que dizer. Não queria pena. Mas o rosto dela não mostrava pena. Apenas… bondade.
“Já estive em apuros também”, acrescentou, como se lesse os meus pensamentos. “Não foi a acampar. Dormi numa carrinha da igreja durante dois meses com a minha filha em 99.”
Pisquei os olhos. “A sério?”
“Sim. As pessoas passavam por nós como se fôssemos invisíveis. Decidi que não faria o mesmo.”
Não sei o que me deu, mas contei-lhe a verdade. Sobre o motel. Sobre a mãe. Sobre os abrigos a dizerem “talvez”.
Ela apenas ouviu, acenando devagar.
Depois, disse algo que não esperava: “Venha comigo. Conheço um sítio.”
Hesitei. “É um abrigo?”
“Não”, respondeu. “É melhor.”
Seguimos o seu carro velho por uma estrada de terra batida, as minhas mãos a apertarem o volante, o coração aos saltos. Olhava para trás, para os miúdos, que riam de algo que o Tomás dissera, alheios a que estávamos a seguir um milagre.
Parámos em frente ao que parecia uma quinta. Cercada, um celeiro vermelho, uma casinha branca, umas cabras no quintal. Um letreiro no portão dizia: Projeto Segunda Chance.
Na varanda, a Joana explicou. Era uma comunidade—mantida por voluntários—que oferecia estadias curtas a famílias em crise. Sem burocracia. Sem formulários. Só pessoas a ajudar pessoas.
“Vão ter um teto, comida, e tempo para se recomporem”, disse.
Engoli em seco. “Qual é o truque?”
“Nenhum”, respondeu. “Só ajudar um pouco. Dar de comer aos animais. Limpar. Talvez construir alguma coisa, se souber.”
Naquela noite, dormimos numa cama de verdade. Os quatro no mesmo quarto, mas com paredes, luz e uma ventoinha que zumbia suave. Deitei-os e sentei-me no chão, chorando como uma criança.
Na semana seguinte, cortei lenha, arranjei uma cerca e aprendi a ordenhar uma cabra. Os miúdos fizeram amizade com outra família que lá estava—uma mãe solteira com gémeas. Perseguiram galinhas, apanharam amoras silvestres e aprenderam a dizer “obrigado” em todas as refeições.
Uma noite, sentei-me com a Joana na varanda. “Como é que descobriu este lugar?”, perguntei.
Ela sorriu. “Não descobri. Criei. Comecei pequena. Era enfermeira, tinha um terreno que a minha avó me deixou. Decidi que queria ser o sinal de alguém, não só uma lembrança.”
As palavras dela ficaram-me.
Duas semanas tornaram-se um mês. Entretanto, juntei algum dinheiro com biscates pela cidade. Uma oficina deixou-me aprender com os mecânicos, e um dia o dono, um homem franzino chamado Fernando, entregou-me um cheque e disse: “Aparece na segunda se quiseres mais.”
Ficámos na quinta mais seis semanas. Nessa altura, já tinha um part-time fixo, suficiente para alugar um apartamento minúsculo nos arredores. A renda era barata porque o chão era torto e os canos gemiam à noite, mas era nosso.
Mudámo-nos um dia antes do início das aulas.
Os miúdos nunca perguntaram porque saímos do motel ou porque ficámos numa tenda. Chamavam-lhe sempre “a aventura”. Até hoje, o Miguel conta às pessoas que vivemos numa quinta e construímos uma cerca com as cabras a observar.
Mas algo aconteceu três meses depois de nos mudarmos.
Num domingo de manhã, encontrei um envelope debaixo do tapete. Sem nome. Apenas Obrigado escrito na frente.
Dentro, havia uma foto antiga—da Joana, jovem, com um bebé ao colo, em frente ao mesmo celeiro. Atrás, uma nota escrita à mão:
“O que deste à minha mãe, ela deu a ti. Por favor, passa adiante quando puderes.”
Perguntei por ali, mas ninguém soube quem o deixara. A Joana não atendia o telefone. Quando voltei à quinta, estava vazia. Um letreiro à mão no portão dizia: Em Descanso. AjudaE a partir daquele dia, prometi a mim mesmo que, sempre que pudesse, seria para alguém o que a Joana foi para nós—um farol na escuridão.