Trago Flores ao Túmulo da Esposa e Descobre Algo Chocante

O vento de fevereiro uivava sobre o antigo cemitério nos arredores de Cascais, arrastando folhas secas entre cruzes inclinadas e lápides modestas. Miguel Sousa caminhava com passos firmes, envolto num casaco preto, as mãos enfiadas nos bolsos. Seu rosto permanecia calmo, quase indiferente, embora por dentro os pensamentos se agitassem.

Como fazia todos os anos, ele vinha cumprir seu ritual silencioso — visitar o túmulo de sua esposa, Beatriz. Cinco anos haviam passado desde que ela partira, e embora a dor externa tivesse desaparecido, Miguel continuava destruído por dentro. Aquele dia levara não só o amor de sua vida, mas também o calor do lar no bairro histórico, as noites partilhadas sobre café, e o laço invisível que o mantinha à tona.

Parou diante de uma lápide simples de granito cinza. O nome de Beatriz estava gravado em letras claras, ao lado das datas de sua vida, agora tão distantes. Miguel ficou ali, olhando para a inscrição, sentindo o frio penetrar-lhe as roupas.

Não era de exprimir em voz alta o que sentia. “Já se passaram cinco anos”, murmurou, sem esperar resposta. Era inútil, mas estando ali, tinha sempre a sensação de que Beatriz podia ouvir-lhe os sussurros, como se o vento trouxesse seu sopro das profundezas da terra.

Talvez por isso nunca a tivesse deixado partir de verdade. Fechando os olhos, Miguel respirou fundo, tentando proteger-se do vazio que lhe apertava o peito. De repente, um leve farfalhar interrompeu-lhe os pensamentos.

Miguel franziu a testa e virou a cabeça. Foi então que o viu.
No túmulo de Beatriz, enrolado num cobertor velho e roto, estava um menino pequeno. Não parecia ter mais de seis anos. O corpo frágil tremia de frio, e nas mãozinhas, ele segurava uma fotografia desbotada.

Miguel ficou paralisado, incapaz de acreditar no que via. A criança estava adormecida. Adormecida justo sobre a lápide de sua esposa.
“Mas que raio…?” resmungou, aproximando-se com cautela, as botas rangendo no cascalho gelado. Ao chegar perto, observou o menino: vestia um casaco fino, claramente inadequado para o inverno.

O cabelo estava despenteado pelo vento, a pele pálida devido ao frio. “Ó miúdo!”, chamou, com voz firme mas suave. O menino não se mexeu.
“Acorda!” Tocou-lhe levemente no ombro. A criança estremeceu, ofegou e abriu olhos grandes e escuros. Primeiro, piscou com medo, depois fitou Miguel.

Por um instante, ficaram apenas a olhar um para o outro. O menino apertou a fotografia com mais força e lançou um olhar rápido à lápide sob ele. Os lábios tremeram e sussurrou: “Mãe!”
Miguel sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. “O que disseste?”, perguntou.

O menino engoliu em seco e baixou o olhar. Os ombros magros curvaram-se. “Desculpa, mãe. Não quis adormecer aqui”, acrescentou, em voz baixa.
O coração de Miguel apertou-se. “Quem és tu?”, perguntou, mas o menino permaneceu em silêncio, apenas pressionando a fotografia contra o peito, como se esta pudesse protegê-lo.

Miguel franziu o sobrolho e estendeu a mão para a fotografia. O menino tentou resistir, mas não tinha forças. Quando Miguel olhou para a imagem, o ar lhe faltou.
Era Beatriz. Beatriz sorridente, com os braços em volta do menino. “Onde arranjaste isto?”, a voz de Miguel saiu trémula de incredulidade.

O menino encolheu-se. “Ela deu-ma”, sussurrou.
O coração de Miguel acelerou. “Isso é impossível”, escapou-lhe.

O menino ergueu a cabeça, e os olhos tristes encontraram os de Miguel. “Não é. A mãe deu-ma antes de partir.”
Miguel sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés. Beatriz nunca lhe falara deste menino. Nunca.

Quem era ele? E por que estava a dormir no seu túmulo, como se ela fosse verdadeiramente sua mãe? O silêncio entre eles tornou-se pesado, como um nevoeiro de inverno. Miguel apertou a fotografia de Beatriz, mas a mente recusava-se a processar o que acontecia. O menino olhava para ele com medo, como se esperasse ser afastado.

Miguel sentiu a irritação crescer-lhe no peito, misturada com desconforto. Olhou novamente para o menino — Tiago, como viria a saber — ali diante dele, pequeno e indefeso, com aqueles olhos grandes que pareciam velhos demais para a idade. O menino tremia de frio, as bochechas avermelhadas, os lábios gretados, como se não tivesse bebido algo quente há dias. Miguel franziu o sobrolho.

“Há quanto tempo estás aqui fora?”, perguntou, mantendo a voz controlada.
“Não sei”, sussurrou Tiago, abraçando-se com os braços finos.

“Onde estão os teus pais?”, insistiu Miguel, mas o menino apenas baixou os olhos em silêncio.
A paciência de Miguel esgotava-se, mas em vez de pressionar, suspirou fundo. Ficar no meio de um cemitério a interrogar uma criança não fazia sentido. Tinha de agir.

“Vem comigo”, disse secamente.
Os olhos de Tiago arregalaram-se. “Para onde?”

“Para um lugar quente”, respondeu, sem elaborar.
O menino hesitou, os dedos apertando a fotografia. “Não mas vais tirar?”, perguntou baixinho, acenando para a imagem.

Miguel olhou para a foto de Beatriz e devolveu-a a Tiago. O menino agarrou-a com ambas as mãos, como se fosse o seu último tesouro. Miguel inclinou-se e ergueu-o com facilidade — era leve como uma pena, o que o preocupou ainda mais. Sem uma palavra, dirigiu-se para a saída do cemitério.

Desta vez, ao deixar o túmulo de Beatriz, Miguel sentiu algo novo. Não estava apenas a deixar para trás a sua memória, mas também a certeza de que não a conhecera por inteiro. E isso assustava-o mais do que estava preparado para admitir.

A velha carrinha Renault de Miguel rugia pelas ruas nevadas de Cascais em silêncio total.
Tiago estava sentado no banco de trás, encostado à janela, olhando com olhos arregalados para as luzes da vila, como se as visse pela primeira vez. Miguel, com as mãos firmes no volante, espreitava-o pelo retrovisor. Tudo parecia um sonho — um menino estranho com uma foto de sua mulher, um orfanato de que nada sabia, um mistério que desfazia a sua compreensão de Beatriz.

Respirou fundo, tentando acalmar-se. Precisava de respostas.
“Como chegaste ao cemitério?”, perguntou, quebrando o silêncio.

Tiago hesitou alguns segundos antes de responder: “A pé.”
Miguel lançou-lhe um olhar cético pelo espelho. “De onde?”
“Do abrigo.”, encolheu os ombros Tiago.

Miguel apertou o volante com mais força. “E como sabias onde a Beatriz estava enterrada?”
Tiago abraçou os joelhos, como se tentasse tornar-se mais pequeno. “Segui-a uma vez”, murmurou.

Miguel sentiu um arrepio. “Seguiste a Beatriz?”
O menino acenou lentamente. “Ela costumava ir ao abrigo. Levava rebuçados,E no momento em que Tiago sorriu timidamente e agarrou a mão de Miguel, o silêncio que antes enchia a casa transformou-se no começo de uma nova história, escrita não apenas com lágrimas, mas também com o calor de um amor que renascia, e o peso do passado finalmente dissolveu-se como neve ao sol.

Leave a Comment